Esta categoria narrativa
assume diferentes aspectos, a saber:
Tempo histórico – os acontecimentos
desenrolam-se no século XVIII, que é definido
por eventos históricos:
* O casamento de D. João V com D. Maria Ana
Josefa - 1708;
* O início da construção do Convento de Mafra -
1717;
* O último auto-de-fé, onde é sentenciado
António José da Silva - 1739.
Tempo
diegético ou da história
– tempo em que decorre a acção.
As referências temporais são escassas e muitas
delas são deduzidas. Assim:
* 1711 – Inicia-se a narrativa: "D. João, quinto
do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto
de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou
há mais de dois anos da Áustria para dar
infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não
emprenhou" (pág. 11); D. João V, "um homem que
ainda não fez vinte e dois anos" (pág. 12); "S.
Francisco andava pelo mundo, precisamente há
quinhentos anos, em mil duzentos e onze" (pág.
21); "Em mil setecentos e quarenta terei
cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente,
Se ainda for vivo" (pág. 301);
* 1717
– A bênção da primeira pedra do convento
é datada de "dezassete de novembro deste ano da
graça de mil setecentos e dezassete" (pág.140);
* 1729 – Celebra-se o casamento de D. José com
Mariana Vitória e de Maria Bárbara com o
príncipe D. Fernando (VI de Espanha);
* 22/10/1730 – A sagração da basílica de Mafra,
determinada pelo rei a um domingo "segundo o
Ritual, e então el-rei mandou apurar quando
cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de outubro, a um domingo, tendo os secretários
respondido, após cuidadosa verificação do
calendário, que tal coincidência se daria daí a
dois anos, em mil setecentos e trinta" (pág.
300);
* 1739 –
Auto-de-fé, onde Baltasar é queimado
conjuntamente com António José da Silva. Termina
a narrativa.
Tempo do
discurso – O
tempo do discurso é revelado através da forma
como o narrador relata os acontecimentos. Pode
apresentá-los de forma linear, optar por
retroceder no tempo em relação ao momento da
narrativa em que se encontra ou antecipar
situações. Ora, o discurso ou a voz deste
narrador omnisciente segue o fluir cronológico
da acção, registando-se, no entanto, alguns
desvios ou anacronias:
* Decorrentes do tratamento do tempo – a
analepse que refere a vontade dos franciscanos
de terem um convento em Mafra (pág. 14) e várias prolepses: a morte do sobrinho de Baltasar e do
Infante D. Pedro (pág. 107); a morte da mãe de
Baltasar, Marta Maria (pág. 159); o grande
número de bastardos do rei D. João V (pág. 93);
* Decorrentes do estatuto de um narrador que não
quer ocultar a sua personalidade de homem do
século XX – presença de comentários, de juízos
críticos, de registos de língua ("que se lixam,
com perdão da anacrónica voz"- pág. 259) e de
ocorrências desse tempo ("os capelães de varas
levantadas e molhos de cravos nas pontas delas,
ai o destino das flores, um dia as meterão nos
canos das espingardas" - pág. 156 - alusão ao 25
de Abril de 1974; "Não faltava mais nada que
conhecer Baltasar estes acontecimentos futuros,
e outros mais cabais, como já terem ido dois
homens à lua, que todos os vimos lá "- pág.
218).
Estes desvios decorrentes de o narrador se
assumir como um homem do século XX batem a
barreira entre dois tempos diferentes: o
presente reflecte-se e revive-se no passado,
interpenetrando-se.
Assim, o narrador manipula
o tempo a seu bel-prazer e verifica-se que, como
já vimos, se há
linearidade e respeito pela cronologia na
datação dos acontecimentos históricos relatados,
as anacronias, principalmente as prolepses,
também reflectem o seu afastamento temporal da
intriga. Estas prolepses
possibilitam a antecipação de dados acerca da
história e marcam a omnisciência narrativa. Mas
há outros acontecimentos que, não sendo
propriamente prolepses face aos factos narrados
na história, constituem uma espécie de deslizes,
próximos de anacronias, que denunciam um
narrador não contemporâneo da história e da
História apresentadas, e perante os quais adopta
uma atitude irónica. Destes destacam-se, como
também já foi em cima referido: a
chegada de ex-colonos, por volta do 25 de Abril;
os cravos que serão símbolo da Revolução, quando
um dia forem enfiados nos canos das espingardas;
a ida à Lua quando se refere às viagens que a
passarola podia facilitar; o desaparecimento dos
autos-de-fé; a referência ao cinema e aos
aviões.
O distanciamento do
narrador em relação à acção narrada é igualmente
perceptível nas interpelações directas que faz
ao narratário e que quebram as barreiras
tradicionais e formais entre o processo da
escrita e o de leitura.
Entretanto, o narrador está
muito bem ciente da não correspondência entre o
tempo da história e o tempo do discurso, e disso
nos dá conta quando simula a voz de um cicerone
que na actualidade guia os visitantes ao
convento, detectando-se aqui a oposição entre
dois tempos diferentes, com o intuito de
corrigir a História através da lembrança
daqueles homens verdadeiros e dos quais não há
registo histórico oficial. Podemos concluir que
há, neste tipo de desfasamento de tempos, a
preocupação de estreitar laços entre o passado
(tempo da coordenada narrativa) e o presente,
além de construir um jogo polifónico de
enunciadores de que o narrador lança mão para,
estrategicamente, orientar conclusões que visem
questionar a História.
Há ainda outros momentos
em que o tempo discursivo não coincide com o
tempo da história. Veja-se o recurso a elipses
temporais, como acontece de 1730 (altura em que
Baltasar desaparece - véspera da sagração do
convento) a 1739,ano em que a acção termina e se
dá o reencontro das personagens principais, na
altura em que António José da Silva e Baltasar
são queimados no auto-de-fé e as duas
personagens ficcionais se reencontram num plano
místico, já que Blimunda mais não é que uma
personagem mística (capítulos XXIII a XXV).