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Análise do poema
LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O Sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
(Fernando Pessoa, Cancioneiro, in Seara Nova,
n.º 526, 11 de Setembro de 1937)
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
1.
Aponte contrastes presentes no poema que reflitam a
oposição deveres(obrigação, artificialidade) e
naturalidade.
2.
Caraterize o sujeito poético, tendo em conta o estado de
espírito por si revelado ao longo da composição.
3.
Explicite o sentido dos versos que constituem a quarta
estrofe: «Quanto é melhor, quanto há bruma,/ Esperar por
D. Sebastião,/ Quer venha ou não!» (vv. 17-19).
4.
Comprove que a irregularidade formal está de acordo com
o título e o conteúdo do poema.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
De entre os vários contrastes presentes no poema que
refletem a oposição deveres/ naturalidade podemos
apontar:
DEVERES/OBRIGAÇÃO/ARTIFICIALIDADE |
NATURALIDADE |
Ler |
Não cumprir um dever |
Estudar |
Não o fazer |
Livros / literatura |
O sol doira, flores, luar... |
Finanças, biblioteca |
Jesus Cristo, crianças |
2.
Inicialmente, o sujeito poético manifesta uma certa
revolta contra o estereótipo, o convencional (“Ai que
prazer / Não cumprir um dever”, “O sol doira / Sem
literatura… edição original”, “Livros são papéis
pintados com tinta”), a obrigação (“Ter um livro para
ler / E não o fazer”), o dever (“Não cumprir um dever”,
“Estudar é nada”), revolta essa que lhe provoca
satisfação (“Ai que prazer”), levando-o a valorizar tudo
o que é natural, espontâneo (“O sol doira / Sem
literatura”) e a rejeitar a artificialidade: “O rio
corre, bem ou mal, / Sem edição original”; “Estudar é
uma coisa em que está indistinta / A distinção entre
nada e coisa nenhuma”.
Depois, o eu lírico evidencia euforia, exaltação,
entusiasmo, num estado de alma que é despertado pelo
apreço a tudo o que se prende com as coisas naturais,
simples: poesia, bondade, danças, crianças, flores,
música, luar, sol…
No final do poema, deixa transparecer uma certa ironia,
ao sobrepor Jesus Cristo a tudo o que é instituído,
convencional: “O mais do que isto / É Jesus Cristo, /
Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse
biblioteca...”. Aliás, não é por acaso que Cristo é
referido. Com efeito, Ele é frequentemente apresentado
como exemplo de simplicidade, naturalidade,
espontaneidade. E não é ainda por acaso que Ele aparece
associado às crianças, também elas simples, verdadeiras,
espontâneas - “Deixai vir a mim as crianças, não as
impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se
tornam semelhantes a elas” (Mat. 19, 13-14)
–
dizia Ele aos seus apóstolos quando estes as queriam
impedir de se aproximarem.
3.
A "bruma" é um nevoeiro espesso, pelo que, em termos figurados,
representa a escuridão, a incerteza, mas também o
mistério, o sonho, tudo o que está para além do visível
e é alimentado pela imaginação, pelo mito. Daí a
evocação de D. Sebastião, o Rei-Desejado, desaparecido
em Alcácer-Quibir, mas que, segundo a crendice popular,
iria aparecer numa manhã de nevoeiro, montado num cavalo
branco, com a nobre missão de salvar Portugal,
emergindo assim o
mito sebastianista,
que foi durante muitos anos o alimento da esperança na
restaurção pátria, por parte de muitos portugueses que
viram o país ser ocupado pelos castelhanos.
Então, ao afirmar «Quanto é melhor, quanto há bruma,/
Esperar por D. Sebastião,/ Quer venha ou não!», o
sujeito poético quer dizer-nos que o sonho é que dá
sentido à vida, independentemente da certeza ou não da
concretização do ato sonhado/idealizado.
4.
A irregularidade formal é bem notória ao longo de toda a
composição poética. Com efeito, há irregularidade
estrófica (o poema é constituído por estrofes de oito,
cinco, três e quatro versos), irregularidade métrica (o
metro ou medida dos versos é variado, indo das quatro
sílabas - «Ai que prazer" - até às doze sílabas métricas
- «Estudar é uma coisa em que está indistinta»),
variedade rimática (rima emparelhada - «...prazer /
...ler»; rima cruzada - «...original / ... matinal»;
interpolada - «...seca / ... biblioteca»; masculina ou
aguda - «...mal /... original»; feminina ou grave - «...
nenhuma / ... bruma»; consoante, em todo o texto; rica
ou antigramatical - «... isto /... Cristo»; pobre ou
gramatical - «... peca /... seca», destacando-se ainda
dois versos brancos ou soltos - «O
Sol doira /
Sem literatura») e irregularidade rítmica (ritmo mais
rápido e cadenciado, nas duas primeiras estrofes, e mais
pausado e irregular, nas restantes estrofes. Ora, toda
esta irregularidade
está em consonância com o título e o
conteúdo do poema, pois reflete o inconformismo do
sujeito poético face aos estereótipos, aos
convencionalismos, e consubstancia a apologia que o eu
lírico faz da
LIBERDADE.
Elaborado e
publicado por
Joaquim Matias da Silva
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Publicado por
Joaquim Matias da Silva
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