A “deformidade física” de
Baltasar (perda da mão esquerda) remete-o para
um universo saturnino, negativo e infernal, do
qual só sairá após a conclusão do seu percurso
ascensional, conquistando, através do voo da
passarola, a assunção da sua verdadeira
identidade. Homem simples e pragmático, incapaz
de questionar os dogmas estabelecidos, torna-se
numa personagem simpática aos olhos do leitor.
Demiurgo (= criador do mundo), parte dum esquema
informe do padre Bartolomeu de Gusmão para
construir a passarola e, qual Ícaro, ousa
aproximar-se demasiado do Sol sofrendo a queda
definitiva que o conduziu à morte na fogueira.
Nesse seu papel de construtor, funciona também
como elemento catalisador da loucura de
Bartolomeu de Gusmão e da aceitação tácita de
Blimunda.
A sua relação amorosa com
Blimunda é baseada no silêncio, no consentimento
mútuo e implícito de ambos numa vida em comum,
num insofismável "querer ser", isto é, a relação
de completude que os une torna-os imunes ao meio
que os rodeia, defende-os dos superstições,
fortalece-os contra medos e temores que se
recusam a aceitar, mais por galhardia que por
receio.
Baltasar Sete-Sóis e
Blimunda Sete-Luas simbolizam a dualidade
cíclica que, harmonicamente, realiza a
cosmogonia universal (o dia e a noite) e
representam a unidade fundamental que congrega
em si os opostos, a totalidade e a perfeição
espiritual.. De facto, se pensarmos nas
personagens e nos nomes que as representam,
podemos constatar que a complementaridade
Sol/Lua, dia/noite, luz/sombra enfatiza a
alternância do mundo, numa clara acepção de
essência dicotómica que une os opostos,
nomeadamente, o universo divino e o universo
humano.
2. Padre Bartolomeu de Gusmão – representa
simbolicamente um ser fragmentário, dividido
entre a religião e a alquimia. Padre oratoriano,
Bartolomeu de Gusmão simboliza, ao longo de
dezoito capítulos, o conflito interior motivado
pela constante demanda de um saber que o
conduzirá à subversão dos dogmas religiosos e,
posteriormente, à morte.
Esta personagem, que assume, aliás, na
verdadeira acepção da palavra, o mito de
Prometeu , revela o seu pensamento dialéctico no
plano da passarola que congrega em si o
princípio de um barco e o princípio da ave que
voa. A busca incessante do "meio" que fará voar
a passarola leva o padre a enveredar pelo estudo
dos antigas teorias medievais da física,
unindo-as às novas descobertas científicas.
Humanista, o padre Bartolomeu de Gusmão procura
aliar o pensamento científico à realidade
religiosa que conhece e será na Holanda que os
seus princípios escolásticos desaparecerão
definitivamente (através da desmistificaçâo da
quinta essência - o éter), para dar lugar ao
elemento espiritual divino, isto é, a vontade
humana.
O padre Bartolomeu de Gusmão simboliza,
assim, a
aspiração humana que está subjacente ao voo da
passarola através das "vontades" que, numa
perspectiva sociológica, substituem o dogmatismo
religioso. Ao substituir a vontade divina pela
vontade humana, Bartolomeu de Gusmão humaniza a
acção, conferindo sacralidade ao acto humano de
construir e de sonhar.
3. Domenico Scarlatti
– representa
simbolicamente o transcendente que advém da
música e que, ligado à clarividência de Blimunda,
instaura o domínio do maravilhoso na obra
Memorial do Convento.
Scarlatti sugere a ascensão do homem através da
música, numa clara união entre a acção e o
pensamento. É, aliás, esta capacidade que lhe
permite compreender o sonho de Bartolomeu
Lourenço e aceitar o par Blimunda/Baltasar. Pela
sensibilidade criadora e pela técnica de
execução, esta personagem liga-se ao mito de
Orfeu e contribui para a criação do universo
mágico que cura misteriosamente Blimunda e
“ajuda” espiritualmente a passarola a elevar-se
do solo.
Domenico Scarlotti partilhará o sonho do trio
Baltasar, Bartolomeu e Blimunda e morrerá,
metaforicamente, após o voo da passarela, uma
vez que destrói o cravo que o ligava
explicitamente à trindade construtora e,
implicitamente, ao interdito, isto é, ao sonho
de voar.
4. D. João V e o Tribunal do Santo Ofício
(Inquisição) – representam o poder despótico,
repressor e maldito, que condena toda uma nação
e todo um povo ao serviço da satisfação dos seus
próprios interesses megalómanos, com a
consequente delapidação do tesouro público.
5. As histórias dos trabalhadores do convento
de Mafra – a nomeação de trabalhadores como
Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da
Rocha, Manuel Milho, João Anes e Julião
Mau-Tempo, constitui uma espécie de homenagem
apoteótica aos trabalhadores sacrificados e
oprimidos.
6. A simbologia dos números:
* Sete
– representa a totalidade do universo em
movimento, pois é o somatório dos quatro pontos
cardeais com a trindade divina. Sete é, pois, o
número da completude. Na verdade, sete são os
dias da semana, sete são as cores do arco-íris,
sete são as notas musicais, sete são as virtudes
teologais e os pecados mortais, sete vezes
quatro ou a soma dos sete primeiros números dão
o resultado de vinte e oito, que corresponde
exactamente ao ciclo lunar, um ciclo completo,
dinâmico, que se fecha para em seguida dar
origem a uma renovação. A sua presença no nome
das personagens Baltasar e Blimunda tem um
significado dual, uma vez que se liga à mudança
de um ciclo e à renovação positiva, cujo
resultado será a construção da passarola. Com
efeito, o par representa, como foi referido, a
alteridade cíclica que subjaz à harmonia
cosmogónica (o dia e a noite); assim, a sua
união perfeita simboliza o acesso a um outro
Poder, que representa, metaforicamente, a
Totalidade.
* Nove – representa, simbolicamente, a gestação,
a renovação e o renascimento. Se atentarmos no
percurso de Blimunda, podemos constatar que esta
procura Baltasar durante nove anos. A sua
separação de Baltasar originou a fragmentação da
unidade representada pelo par. Assim, a sua
demanda pela completude corresponde não a um
período de gestação, mas a um período de
redenção, findo o qual será restabelecida a
ordem cósmica e a Unidade - é a ela que pertence
a "vontade" de Baltasar no momento em que morre,
queimado na fogueira da Inquisição.
7. Passarola
Concebida como uma "barca
voadora", a passarola simboliza o elo de ligação
entre o Céu e a Terra. Símbolo dual, a passarola
encerra, na sua concepção, o valor de dois
símbolos que, aparentemente, se opõem: a barca e
a ave. Todavia, se pensarmos que a barca remete
para a viagem e a ave remete para a liberdade,
concluímos que a passarola, pelo seu movimento
ascensional, representa metaforicamente a alma
humana que ascende aos céus, numa ânsia de
realização que a liberta do universo canónico e
dogmático dos homens. Deste modo, a passarola
simboliza a libertação do espírito e a passagem
a um outro estado de existência.