O sujeito poético marca a sua singularidade e a sua
diferença perante o mundo, mais concretamente, face aos
"outros" («Uns» e «outros»). Assim, do seu ponto de
vista, quem olha para o passado vê um simulacro da
realidade vivida, porquanto essa realidade, que já o
foi, não existe mais no presente («Uns, com os olhos
postos no passado. / Vêem o que não vêem» - vv.1 e 2),
apesar de ela poder ser actualizada pela memória. A
limitações semelhantes estão sujeitos os «outros» que
fitam o futuro, pois eles «vêem / O que não pode ver-se»
(vv.3 e 4) e imaginam apenas o que ainda não existe.
A existência radicada em percepções ilusórias é, pois,
alvo de apreciação crítica do sujeito poético, recusando
este o que está «longe» do «momento» actual (o passado e
o futuro).
Ao demonstrar a não fiabilidade da visão orientada para
o passado ou para o futuro, o sujeito poético defende o
presente como tempo de realização do homem: «Porque tão
longe ir pôr o que está perto – / A segurança nossa?
Este é o dia» (vv.5 e 6). Na verdade, através da
apresentação antitética do tempo – «longe» / «perto» – o
«eu» procede à valorização do presente («Este é o dia»)
como temporalidade segura, porque se encontra ao alcance
do homem. Assim, o relevo conferido ao momento presente
é bem visível no poema, como o comprovam:
- a predominância dos verbos no presente do indicativo
em todas as estrofes («Vêem», «pode», «está», «é»,
«somos», «flui», «confessa», «vivemos», «és»);
- a delimitação de unidades temporais, cada vez mais
restritas, relativas ao tempo que passa («o dia», «a
hora», «o momento»);
- a utilização insistente de demonstrativos, que remetem
para a ideia de proximidade, sublinhando a importância
de viver o instante presente («Este é o dia / esta é a
hora, este o momento» - w. 6, 7);
- a homologia estabelecida entre o tempo presente e o
Ser; ou seja, o homem é o próprio tempo que se escoa
(«este o momento, isto / É quem somos, e é tudo» - ww.7
e 8; «Colhe /o dia, porque és ele.» - vv.11 e 12).
Ao fazer a apologia do presente, o eu lírico
considera, consequentemente, um logro a
construção da existência a partir de um passado
morto ou de um futuro incerto («Vêem o que não
vêem», «vêem / O que não pode ver-se» - vv.2, 3
e 4) e, apesar da brevidade do presente («dia»,
«hora», «momento»), o «eu» defende que é nele,
em cada instante vivido, que o homem se realiza
(«Colhe / o dia, porque és ele.» — vv.11 e 12) e
é nele que conquista a felicidade possível («A
segurança nossa»).
Desta forma, procura superar a angústia causada pela
consciência da nulidade do Ser, ameaçado pelo tempo
destruidor: «Perene flui a interminável hora / Que nos
confessa nulos» - vv.9 e 10.
Consciente da efemeridade da vida e da inevitabilidade
da morte («No mesmo hausto / Em que vivemos,
morreremos.» - vv.10 e 11), o sujeito poético postula
uma filosofia de vida estóico-epicurista que,
influenciada pela sabedoria horaciana, aponta como regra
de vida a fruição do dia, do instante que passa: «Colhe
/ O dia» (vv.11 e 12).
O tema da efemeridade da vida e a exaltação da vivência
do presente consubstanciam marcas clássicas, que não se
verificam só no plano do conteúdo. Também são visíveis
aos níveis fónico-formal e morfossintáctico, como o
ilustram a construção formalmente perfeita, com esquema
métrico e melódico (versos isométricos e isorrítmicos);
a forma métrica preferida - ode sáfica; a linguagem
clássica, arcaizante e latinizante, erudita, trabalhada,
concisa, hermética, mas sugerindo o fluir do pensamento;
o recurso frequente a latinismos; as construções
sintácticas ousadas, com recurso frequente às anástrofes
e aos hipérbatos; o estilo horaciano (tal como Horácio,
usa, por exemplo, o plural "nosso"), construído
laboriosamente. Estas mesmas marcas configuram poemas
como "As rosas amo dos jardins de Adónis", “Sábio é o
que se contenta com o espectáculo do mundo”, “Não tenhas
nada nas mãos”, “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do
rio” e “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”.
Esta composição poética apresenta intencionalidades
estilísticas caracterizadoras da poética de Reis, tais
como:
- o paradoxo («Vêem o que não vêem», «vêem / O que não
pode ver-se»), que realça o engano em que assenta a
inconsistência desses modos de visão;
- o hipérbato que, na 2.ª estrofe (vv.5 e 6), destaca o
movimento interrogativo («Porque») e a expressão que
sintetiza a procura de estabilidade existencial («A
segurança nossa») e que, na 3.ª estrofe («Perene flui a
interminável hora / Que nos confessa nulos» - vv.9 e
10), sublinha o contraste entre a perenidade do
movimento do tempo e a efemeridade da vida humana;
- as antíteses evidentes na 2.ª estrofe («longe» /
«perto» - v. 5) e na 3.° estrofe («vivemos, morreremos»
- v. 11), sendo que a primeira salienta a relação entre
uma temporalidade distante, enganadora, e aquela que se
pode alcançar, enquanto a segunda destaca a problemática
central do poema - a da existência condenada a perecer;
- a gradação descendente («o dia», «a hora», «o
momento»), acentuando o carácter breve, fugaz,
instantâneo do tempo em que se vive;
- a imagem «Colhe / O dia, porque és ele.» (vv.11 e 12),
a qual evidencia metaforicamente uma lição de vida – o
homem é um ser de tempo e existe na precariedade do
instante;
- o vocabulário erudito, latinizante («Perene», «hausto»),
confirmador da formação clássica de Reis.
Terminamos este comentário dando um enfoque especial aos
traços da poética de Ricardo Reis e à sua posição no
contexto da heteronímia pessoana. Efetivamente, o poema
evidencia alguns dos traços representativos da poética
de Reis. A título de exemplo, podemos referir:
- a preferência pelo presente precário e a afirmação de
uma arte de viver, assente na fruição do instante;
- o gozo do presente e a aceitação da morte, indiciando
uma filosofia de vida que concilia o Epicurismo com o
Estoicismo;
- a influência de Horácio, através do tema do carpe diem;
- uma arte poética assente no rigor, revelando um estilo
neoclássico elevado, o que decorre da sua formação
latinista e helenista.
Entretanto, no contexto da heteronímia pessoana –
criação máxima do Modernismo português – salienta-se, a
respeito de Ricardo Reis, que:
- ele se integra no universo heteronímico como discípulo
do Alberto Caeiro;
- é o heterónimo que representa a tradição literária
clássica e as regras formais, por oposição ao modernista
Álvaro de Campos.
Elaborado e
publicado
por
Joaquim
Matias da Silva
Nota 1:
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estilísticos, abra
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Fernando Pessoa e seus heterónimos.
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