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Fernando Pessoa

 

UNS, COM OS OLHOS POSTOS NO PASSADO

 

- Uma proposta de análise do poema -

 

O sujeito poético marca a sua singularidade e a sua diferença perante o mundo, mais concretamente, face aos "outros" («Uns» e «outros»). Assim, do seu ponto de vista, quem olha para o passado vê um simulacro da realidade vivida, porquanto essa realidade, que já o foi, não existe mais no presente («Uns, com os olhos postos no passado. / Vêem o que não vêem» - vv.1 e 2), apesar de ela poder ser actualizada pela memória. A limitações semelhantes estão sujeitos os «outros» que fitam o futuro, pois eles «vêem / O que não pode ver-se» (vv.3 e 4) e imaginam apenas o que ainda não existe.

A existência radicada em percepções ilusórias é, pois, alvo de apreciação crítica do sujeito poético, recusando este o que está «longe» do «momento» actual (o passado e o futuro).

 

 

Ao demonstrar a não fiabilidade da visão orientada para o passado ou para o futuro, o sujeito poético defende o presente como tempo de realização do homem: «Porque tão longe ir pôr o que está perto – / A segurança nossa? Este é o dia» (vv.5 e 6). Na verdade, através da apresentação antitética do tempo – «longe» / «perto» – o «eu» procede à valorização do presente («Este é o dia») como temporalidade segura, porque se encontra ao alcance do homem. Assim, o relevo conferido ao momento presente é bem visível no poema, como o comprovam:
- a predominância dos verbos no presente do indicativo em todas as estrofes («Vêem», «pode», «está», «é», «somos», «flui», «confessa», «vivemos», «és»);
- a delimitação de unidades temporais, cada vez mais restritas, relativas ao tempo que passa («o dia», «a hora», «o momento»);
- a utilização insistente de demonstrativos, que remetem para a ideia de proximidade, sublinhando a importância de viver o instante presente («Este é o dia / esta é a hora, este o momento» - w. 6, 7);
- a homologia estabelecida entre o tempo presente e o Ser; ou seja, o homem é o próprio tempo que se escoa («este o momento, isto / É quem somos, e é tudo» - ww.7 e 8; «Colhe /o dia, porque és ele.» - vv.11 e 12).

 

Ao fazer a apologia do presente, o eu lírico considera, consequentemente, um logro a construção da existência a partir de um passado morto ou de um futuro incerto («Vêem o que não vêem», «vêem / O que não pode ver-se» - vv.2, 3 e 4) e, apesar da brevidade do presente («dia», «hora», «momento»), o «eu» defende que é nele, em cada instante vivido, que o homem se realiza («Colhe / o dia, porque és ele.» — vv.11 e 12) e é nele que conquista a felicidade possível («A segurança nossa»).

Desta forma, procura superar a angústia causada pela consciência da nulidade do Ser, ameaçado pelo tempo destruidor: «Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos» - vv.9 e 10.

 

Consciente da efemeridade da vida e da inevitabilidade da morte («No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos.» - vv.10 e 11), o sujeito poético postula uma filosofia de vida estóico-epicurista que, influenciada pela sabedoria horaciana, aponta como regra de vida a fruição do dia, do instante que passa: «Colhe / O dia» (vv.11 e 12).
 

O tema da efemeridade da vida e a exaltação da vivência do presente consubstanciam marcas clássicas, que não se verificam só no plano do conteúdo. Também são visíveis aos níveis fónico-formal e morfossintáctico, como o ilustram a construção formalmente perfeita, com esquema métrico e melódico (versos isométricos e isorrítmicos); a forma métrica preferida - ode sáfica; a linguagem clássica, arcaizante e latinizante, erudita, trabalhada, concisa, hermética, mas sugerindo o fluir do pensamento; o recurso frequente a latinismos; as construções sintácticas ousadas, com recurso frequente às anástrofes e aos hipérbatos; o estilo horaciano (tal como Horácio, usa, por exemplo, o plural "nosso"), construído laboriosamente. Estas mesmas marcas configuram poemas como "As rosas amo dos jardins de Adónis", “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”, “Não tenhas nada nas mãos”, “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio” e “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”.


 

Esta composição poética apresenta intencionalidades estilísticas caracterizadoras da poética de Reis, tais como:
- o paradoxo («Vêem o que não vêem», «vêem / O que não pode ver-se»), que realça o engano em que assenta a inconsistência desses modos de visão;
- o hipérbato que, na 2.ª estrofe (vv.5 e 6), destaca o movimento interrogativo («Porque») e a expressão que sintetiza a procura de estabilidade existencial («A segurança nossa») e que, na 3.ª estrofe («Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos» - vv.9 e 10), sublinha o contraste entre a perenidade do movimento do tempo e a efemeridade da vida humana;
- as antíteses evidentes na 2.ª estrofe («longe» / «perto» - v. 5) e na 3.° estrofe («vivemos, morreremos» - v. 11), sendo que a primeira salienta a relação entre uma temporalidade distante, enganadora, e aquela que se pode alcançar, enquanto a segunda destaca a problemática central do poema - a da existência condenada a perecer;
- a gradação descendente («o dia», «a hora», «o momento»), acentuando o carácter breve, fugaz, instantâneo do tempo em que se vive;
- a imagem «Colhe / O dia, porque és ele.» (vv.11 e 12), a qual evidencia metaforicamente uma lição de vida – o homem é um ser de tempo e existe na precariedade do instante;
- o vocabulário erudito, latinizante («Perene», «hausto»), confirmador da formação clássica de Reis.

 

Terminamos este comentário dando um enfoque especial aos traços da poética de Ricardo Reis e à sua posição no contexto da heteronímia pessoana. Efetivamente, o poema evidencia alguns dos traços representativos da poética de Reis. A título de exemplo, podemos referir:
- a preferência pelo presente precário e a afirmação de uma arte de viver, assente na fruição do instante;
- o gozo do presente e a aceitação da morte, indiciando uma filosofia de vida que concilia o Epicurismo com o Estoicismo;
- a influência de Horácio, através do tema do carpe diem;
- uma arte poética assente no rigor, revelando um estilo neoclássico elevado, o que decorre da sua formação latinista e helenista.

Entretanto, no contexto da heteronímia pessoana – criação máxima do Modernismo português – salienta-se, a respeito de Ricardo Reis, que:
- ele se integra no universo heteronímico como discípulo do Alberto Caeiro;
- é o heterónimo que representa a tradição literária clássica e as regras formais, por oposição ao modernista Álvaro de Campos.

 

Elaborado e publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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© Joaquim Matias  2011

 

 

 

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