A palavra “ode” (Do gr. odé, «canto», pelo lat.
oda-,
«id.», pelo fr. ode, «id.») é um cântico laudatório,
constituindo um subgénero lírico, cultivado, segundo
modelos greco-latinos, desde o Renascimento até à época
contemporânea, com os temas mais diversos (heróicos,
amorosos, etc.) e esquemas métricos também diferentes,
mas caracterizando-se pela eloquência, solenidade e
elevação de estilo. Ao recorrer, portanto, ao adjectivo
“triunfal”, o sujeito poético arquitecta um título de
pendor pleonástico, pretendendo com ele superlativar
aquilo que de per si é já grandioso.
A Ode Triunfal é, com efeito, um hino à civilização
industrial e a tudo o que a ela se reporta, nos mais
variados campos da actividade humana – indústria,
agricultura, comércio, serviços:
máquinas, fábricas, lâmpadas eléctricas, motores,
maquinismos, rodas, engrenagens, automóvel, quilhas de
chapas e de ferro, ruas, praças, cidades, cimento,
prédios, montras, manequins, fachadas de grandes lojas,
tramways, funiculares, metros, adubos, debulhadoras,
laboratórios…
Assumindo-se como exemplo de ruptura de vanguarda, esta
ode, pela forma, pelo vocabulário utilizado, pelos
aspectos morfossintácticos, e até pelo próprio conteúdo,
constitui uma oposição ao ideal clássico da estética
aristotélica. Com efeito, em vez de fazer assentar, como
defendia Aristóteles, a ideia de beleza no equilíbrio
comandado pela inteligência, no conceito quase intuitivo
do que é harmonioso, agradável, na sensação do que é
belo, (re)inventa uma outra forma de beleza – o Belo
Feio ou o Belo Horrível. Efectivamente, nesta obra de
Campos, é atribuído o estatuto poético a vocábulos que,
até então, não o possuíam. Quem se lembraria, até aos
princípios do século XX, chamar para a poesia palavras
ou expressões como “quilhas de chapas de ferro”,
“êmbolos”, “correias de transmissão”, “motor”,
“debulhadoras a motor” ou “adubos”? Quem se lembraria de
utilizar, nas suas composições poéticas, num excesso de
expressão, séries intermináveis, falsamente caóticas, de
enumerações assindéticas e polissindéticas, de
exclamações, de palavras maiusculadas, de apóstrofes, de
repetições, de onomatopeias, de substantivação de
fonemas, de anáforas, de uma catadupa de outros recursos
estilísticos? É claro que esse “excesso de expressão”
pretende traduzir o “excesso de sensações” de um sujeito
poético que pretende “sentir tudo de todas as maneiras”
e “ser toda a gente e toda a parte”. No entanto, não
deixa de ser original e, até, convenhamos, bizarro!...
Mas se na vida moderna tudo mudou, por que é que essa
mudança não deveria também estender-se à poesia?
Entretanto, seria conveniente destacar que a caótica
força explosiva saída do subconsciente em convulsão do
sujeito poético (o cântico de Campos é uma atitude
literária e a perfeição e força da máquina são
compensações para os seus próprios fracassos e
recalcamentos ou para a sua inadaptação) revela-se como
um novo processo de descompressão do subconsciente de
Pessoa, incessantemente torturado pela inteligência,
pela “dor de pensar”.
A ODE TRIUNFAL como exemplo de ruptura de vanguarda
Pelo que atrás foi exposto, fácil é concluir que a Ode
Triunfal é, portanto, um exemplo acabado de um poema de
ruptura de vanguarda, ruptura essa que se verifica a
vários níveis:
A nível formal, pela(o)
• extensão do poema e dos versos;
• irregularidade estrófica;
• ausência de esquemas rimático e métrico (há versos que
vão desde as cinco sílabas métricas até às vinte e uma e
naqueles em que entram sons que não são signos
linguísticos essa contagem é puramente subjectiva);
• ritmo, por vezes lento (veja-se a estância
parentética, constituindo, por isso mesmo, uma espécie
de aparte, onde o sujeito poético evoca nostalgicamente
a infância alegre, para sempre perdida…), mas
preferencialmente feroz, dinâmico, nervoso, caudaloso,
vertiginoso, frenético, a traduzir quer o ritmo
vivencial do sujeito poético, quer o ritmo avassalador
da sociedade moderna, que tudo arrasta e que tudo
devora, num frenesim estonteante e impiedoso.
A nível morfológico:
Pelo vocabulário:
1. Que é rico, variado, usado copiosamente;
2. Onde surge uma série de vocábulos, muitas vezes de
índole técnica, destituídos, na óptica da lírica
tradicional portuguesa, de estatuto poético;
3. Com recurso frequente a estrangeirismos (galicismos e
anglicismos), ao serviço do tão desejado cosmopolitismo,
que caracteriza a arte moderna, bem como da crítica
social (snobismo);
4. Onde há maiusculação de palavras, para enfatizar a
verdadeira essência da sua significação.
A nível sintáctico:
Pela ausência quase completa da subordinação (hipotaxe),
e, por conseguinte, a dominância das orações coordenadas
(parataxe), sindéticas e assindéticas;
Pela prevalência das construções nominativas (a forma
verbal não está expressa) e não finitas (orações cujo
núcleo verbal é um infinitivo, um gerúndio ou um
particípio passado – as comummente conhecidas por formas
nominais do verbo), como o ilustram os exemplos
“Fraternidade com todas as dinâmicas!”, “Horas
europeias, produtoras, entaladas/ Entre maquinismos e
afazeres úteis!"; ou “Rugindo, rangendo, ciciando,
estrugindo, ferreando/ Fazendo-me um excesso de
carícias…”; ou ainda “Ah, poder exprimir-me todo como um
motor se exprime!/ Ser completo como uma máquina!”,
“Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me
passento”.
Assim, os poucos verbos conjugados referem-se à
actividade do sujeito poético, que quer apreender a
multiplicidade deste mundo, e não às coisas postas em
movimento. Parece que o eu lírico não encontra bastante
tempo para reflectir e coordenar a realidade que sobre
ele se despenha. Limita-se a nomeá-la, a cantar o que
lhe acontece. Os seus versos transbordam de sensações,
são um balbucio de palavras, interjeições, pedaços de
frases que se precipitam, se interpenetram. Também
semanticamente estes segmentos são objecto de uma
estranha mistura: partes integrantes de máquinas
juntam-se com nomes de filósofos, fragmentos de uma
velha cultura destruída; expressões populares, até
vulgares, surgem ao lado de expressões reveladoras da
sua formação escolar; termos técnicos são postos ao
serviço da “Nova Minerva sem-alma” (in Fernando Pessoa,
O Eu Estranho, de Georges Güntert).
Pelas incongruências gramaticais, com frases, pelo
menos aparentemente, desconexas e incoerentes: “… fera
para a beleza disto”, “… o cometa dum regicídio/ Que
ilumina Prodígio e Fanfarra os céus/ Usuais e lúcidos da
Civilização quotidiana!” Pelo recurso frequente a
períodos que são muitas vezes uma simples
exclamação (Ver, por exemplo, os últimos vinte e cinco
versos, onde os verbos são quase inexistentes e onde há
versos que são totalmente constituídos por fonemas e
onomatopeias).
A nível semântico: Pelo constante enaltecimento à dinâmica da vida e da
máquina, à força, à violência, à agressividade da
sociedade quotidiana, sem esquecer, contudo, o pólo
negativo dessa mesma sociedade, com menção explícita ou
velada, mas quase sempre irónica, à desumanização, à
hipocrisia, à corrupção, à miséria física e moral, à
pilhagem, aos falhanços da técnica.
ODE TRIUNFAL – pontos de aproximação e de afastamento da
estética futurista
A Ode Triunfal acusa, sobretudo, influências do
sensacionismo, mas também do futurismo. Relativamente a
esta última estética, podemos apontar vários pontos de
aproximação e de afastamento.
Pontos de aproximação
Pontos de afastamento
1. Nível
formal (ver página pp. 1-2) – versilibrismo;
2. Nível morfológico (ver p. 2) – palavras em liberdade, muitas vezes em
prejuízo da congruência e da coesão gramaticais, uma e outra a
sugerirem, muitas vezes, a incoerência e a ilogicidade dos tempos
actuais;
3. Nível sintáctico (ver p. 2);
4. Hino continuado à civilização hodierna;
5. Evocação do glorioso mundo moderno da velocidade, da violência e da
guerra;
6. Enaltecimento do dinamismo, considerado a força universal, capaz de
transformar, para melhor, o universo;
7. Desprezo de tudo o que é clássico, tradicional e estático;
8. O culto da liberdade, da velocidade, da energia, da força física, da
máquina, do perigo;
9. Veneração pela originalidade e consequente adopção do ideal de beleza
não aristotélico (ver p. 1.)
10. O cosmopolitismo, manifestado pelo eu lírico no recurso frequente
aos neologismos e estrangeirismos (galicismos e anglicismos) e no fecho do poema, ao
dizer: “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”
Ocorrem,
especialmente, ao nível do conteúdo. Assim:
1A sociedade
moderna também gera
·
*
A desumanização
– “…gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa/ Por vielas
quase irreais de estreiteza e podridão./ Maravilhosa gente humana que
vive como os cães.”
·
*
A hipocrisia –
“… escrocs exageradamente bem-vestidos;/ Membros evidentes de clubes
aristocráticos.”
·
*
A corrupção - “maravilhosa
beleza das corrupções políticas”
·*
A ostentação e
as injustiças sociais – “… chefes de família vagamente felizes/ E
paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete/ De algibeira a
algibeira!”
·
*
A prostituição
– “Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)/ Das
burguesinhas, mãe e filha geralmente,/ Que andam na rua com um fim
qualquer.”
·*
A intrujice dos
políticos – “Parlamento, políticas, relatores de orçamentos;/
Orçamentos falsificados!”
·
*
Os falhanços da
técnica – “Eh-lá grandes desastres de comboios!/ Eh-lá desabamentos
de galerias de minas!/ Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes
transatlânticos!”.
2.
*
A força e
agressividade da máquina provocam, logo de início, mal-estar e dor no
sujeito poético. Na verdade, a invocação da civilização mecânica é feita
de uma forma febril;
3.Em vez de
cantar apenas o futuro e esquecer o passado e o presente, o eu da
enunciação vê o presente como reflexo do passado e potencializador do
futuro;
4.A evocação da
infância, numa estrofe parentética (como de um aparte se tratasse),
constitui uma quebra, uma espécie de parêntesis na apologia da
civilização industrial, confirmando que, em Campos, o ontológico
sobrepõe-se ao cronológico;
5.Previsão da fim
da civilização ocidental, que contém, na sua grandeza, os germes da
própria autodestruição;
As atitudes sadomasoquistas, passivas e autopunitivas, nada têm a ver
com a violência futurista (que radica mais na exaltação do amor ao
perigo, à coragem, à audácia, à rebelião), antes vêm ao encontro do
desejo intenso do eu lírico de sentir tudo de todas as maneiras.
ODE TRIUNFAL – Caracterização do sujeito poético
Como se revela ou apresenta o sujeito poético ao longo do
poema? Eis algumas das suas características:
1. Num estado de euforia, de semiconsciência, de inebriação,
de nevrose, que, paradoxalmente constitui o momento ideal
para a criação poética (note-se que Fernando Pessoa escrevia
muito quando vivia subjugado por estados similares, numa
espécie de espasmo, de êxtase, de alienação, de inspiração.
2. Assume-se como sensacionista, pois o ideal
esfuziantemente revelado ao longo da composição é “sentir
tudo de todas as maneiras”. Sentir tudo, numa “histeria de
sensações” e identificar-se com tudo, mesmo com as coisas
mais aberrantes, eis o desiderato de Campos. Aliás, o
“excesso de expressão” a que este heterónimo recorre
pretende traduzir o “excesso de conteúdo”, tão
característico do mundo moderno.
3. Ao querer ser o “poeta da vertigem das sensações
modernas, da volúpia da imaginação, da energia explosiva”,
assume aspectos de um certo masoquismo sádico, que se
orienta mais para a criação de sensações novas e violentas
(sensacionismo) do que para a exaltação das máquinas.
4. Embora enalteça as virtudes (a força, o dinamismo, a
energia, as técnicas inovadoras, até mesmo a violência…) da
civilização dos nossos dias, não ignora o reverso da
medalha, ou seja, o pólo negativo dessa mesma civilização: a
desumanização, a hipocrisia, a corrupção política, a miséria
física e moral que atinge as pessoas, os falhanços das
técnicas, a ostentação e as injustiças sociais, a
prostituição e tantos outros malefícios…
5. Exprime um sentimento de repulsa, de náusea, provocado
pela poluição física e moral da vida hodierna e uma paixão
quase erótica por essa mesma vida. Na verdade, a relação do
eu lírico com esse mundo de progresso mecânico exprime-se
através de uma linguagem profundamente evocadora de um
erotismo ostensivo, pelo menos em alguns passos da ode:
“Como eu vos amo a todos, a todos, a todos, / Como eu vos
amo de todas as maneiras, / Com os olhos e com os ouvidos e
com o olfacto / E com o tacto (o que palpar-vos representa
para mim!) / E com a inteligência como uma antena que fazeis
vibrar! / Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!”;
“Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera ./ Amo-vos carnivoramente, / Pervertidamente e enroscando a minha vista
/ Em vós, (…)”; “Possuo-vos como a uma mulher bela, /
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se
ama, / Que se encontra casualmente e se acha
interessantíssima.”
6. Frequentemente humaniza as máquinas, acabando por
personificá-las, e, paralelamente, tende a materializar-se,
identificando-se com essas mesmas máquinas: ”Ah, poder
exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo
como uma máquina! / Poder ir na vida triunfante como um
automóvel último-modelo! / Poder ao menos penetrar-me
fisicamente de tudo isto, / Rasgar-me todo, abrir-me
completamente, tornar-me passento / A todos os perfumes de
óleos e calores e carvões / Desta flora estupenda, negra,
artificial e insaciável!”.
7. Encara o presente como sendo a súmula do passado e do
futuro. E esta síntese temporal justifica-se, na medida em
que o presente inclui o passado e possibilita o futuro. O
presente será, pois, o Instante em que a Plenitude se pode
realizar, razão por que o presente vivencial do Poeta, o
tempo psicológico, ganhe relevância.
8. Mas se o eu lírico pretendia ultrapassar e eliminar a
sucessão presente-passado-futuro, o mesmo queria fazer em
relação ao espaço, ao almejar uma síntese temporal: “Ah não
ser eu toda a gente e toda a parte!”
9. O sujeito poético surge-nos, por isso, como um cosmos,
uma síntese espácio-temporal, síntese essa que vinha, aliás,
ao encontro da pretensão de Pessoa: conseguir a construção
da sua identidade artística – se ele, poeta, fosse um
pequeno cosmos, um eu-universo (síntese de tudo), mais
facilmente poderia ser o cantor universal do grande cosmos,
satisfazendo, assim, o seu espírito megalómano.
10. Adopta um novo conceito de beleza – o ideal de beleza
não aristotélico, o Belo Feio ou o Belo Horrível (Cf. p. 1).
Trabalho de
Joaquim Matias da Silva
Nota 1:
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Nota 2:
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aqui
análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e
seus heterónimos.
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de poemas e estudos integrais de todas as obras e
autores que fazem parte dos programas de
Português e de Literatura Portuguesa dos 9.º ao
12.º anos de escolaridade.