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Análise do poema
COMEÇA A
HAVER MEIA-NOITE, E A HAVER SOSSEGO
Começa a haver meia-noite,
e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro-andar...
Não oiço já passos no segundo-andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...
Vai tudo dormir...
Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! –
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel! - demasiado rápido! –
Os duplos passos em conversa falam-me
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...
Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa...
9-8-1934
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 59.
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
1.
Este poema não apresenta regularidade métrica ou
estrófíca. No entanto, obedece a certas regras de
composição. Identifique as repetições que lhe marcam o
ritmo. Justifique a resposta.
2.
É notória, ao longo do poema, a ideia da passagem do
tempo. Explicite de que modos é ela sugerida.
3.
Indique um sentido possível do verso 17: "Os duplos
passos em conversa falam-me".
4.
Descreva a imagem que o sujeito poético dá de si mesmo,
ilustrando-a com ideias e/ou expressões do texto.
5.
Aponte quatro intencionalidades estilísticas, realçando
o seu valor expressivo.
6.
Integre a composição poética apresentada numa das fases
da evolução poética de Álvaro de Campos. Justifique
devidamente a sua resposta.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
Essas repetições são de diferentes tipos. Assim,
encontramos exemplos de:
- repetições simples ("... a haver...", "... a haver..."
- v. 1; "andares", "terceiro-andar", segundo-andar" - vv.
3-5);
- repetições de tipo rima, pelo recurso, nomeadamente, a epíforas ou
epístrofes e, ainda, a formas verbais no gerúndio: "terceiro-andar",
"segundo-andar"-
w. 4-5 ; "...recluso", "...recluso" -
w. 13-14; "... escutando", "Esperando" -
w. 20-21 (jogando ainda, neste
caso, com as aliterações nasais de "sonolentamente");
- repetição de tipo refrão: "Vai tudo dormir...",
"Vai tudo dormir..."
vv. 7 e 19 (numa simetria quase perfeita (depois de uma
estrofe de 6 versos, segue-se uma outra de 5 e de 4
versos, respetivamente), a sugerir a ideia de que só ele
é um ser à parte. Os outros guiam-se pela rotina, pelo
convencionalismo; ele assume a diferença, a sua
rebeldia;
- repetição anafórica: "... que de estrelas!",
"Que grandes silêncios maiores há no alto!", "Que céu
anticitadino!" - w. 10-12; "Qualquer coisa", "Qualquer
coisa" -
w. 22-23.
Naturalmente que estas repetições, acentuadas pelo
recurso aos sons nasais e às reticências, conferem um
ritmo lento, pausado, mesmo dorido ao poema, traduzindo
as ideias de melancolia e de angústia de um ser que se
sente marginalizado (possivelmente automarginalizado)
pela vida e pela sociedade. Esta última deixa-se
levar pela rotina, pelo convencionalismo, ao contrário
do eu lírico que não consegue fazê-lo. Daí derivam
consequências bem diferentes: enquanto os outros acabam
por ser mais ou menos felizes, para ele só restam a
solidão e a desagregação do seu ser...

2.
A lenta passagem do tempo é sugerida: pela ideia de um silêncio que, a pouco e pouco, se
instala ("Calaram o piano no terceiro-andar...
/
Não oiço já passos no segundo-andar... /
No rés-do-chão o rádio está em silêncio..." - vv.4-6); pela dispersão e a nitidez dos «ruídos da rua» (quarta
estrofe); pela repetição de uma espécie de refrão («Vai tudo
dormir»), que sugere um abrandamento de ritmo; pela
repetição de «Qualquer coisa», marcando de modo especial
a lentidão com que o tempo corre e o vazio que lhe está
associado (sexta estrofe).
Deve ainda notar-se que a passagem do tempo é, desde
logo, dada pela perifrástica «Começa a haver meia-noite,
e a haver sossego». O tempo é também marcado pela
utilização do presente do indicativo (às vezes referido
a um passado imediatamente anterior - «Não oiço já»); do
presente do indicativo com valor de futuro (cf. a perifrástica
«Vai tudo dormir»); e do gerúndio, assinalando o aspeto
durativo do presente («escutando,/ Esperando»).
3. "Os
duplos passos em conversa falam-me" podem ser objeto de interpretações
diferentes. Assim, podem segerir que há duas pessoas que
estão na rua a conversar e que entretanto se afastam,
sendo que essa “conversa”
irá repercutir-se na alma do sujeito lírico,
despertando-lhe sensações de abandono, de melancolia, de
uma solidão profunda. Podem querer dizer que o barulho produzido pelos passos é percepcionado como
um tipo de linguagem, pois os passos «falam» no sentido em que sugerem ao «eu»
solitário que escuta uma presença ou uma companhia
humanas, de si arredadas, Esses passos que o «eu» ouve
podem também consubstanciar para ele a sensação do exterior,
do espaço não confinado, do espaço livre (da rua), de
que ele nunca poderá usufruir, por estar «recluso»
no seu prédio, afastado da janela para onde não tem
vontade de ir, tal é a sua solidão!... Por isso só vai
(pres)sentindo os ruídos de fora, sinais claros da
existência de vida da qual ele se sente ausente, ou por
vontade própria ("Não quero ir à janela:"
- v. 9)
ou porque a isso foi obrigado - vê-se divorciado dos
outros por se ter adiantado demais aos seus companheiros
desta "viagem" terrena : "Fico sozinho com o universo inteiro"
- v. 8.

4.
O sujeito poético dá se si mesmo uma imagem um pouco
confrangedora e constrangedora. Efetivamente, sabemos,
pela mensagem que o poema nos transmite, que as
suas sensações começam por ser todas do exterior e que
está atento à vida da cidade à sua volta
("Calaram o piano...", "Não oiço já passos...",
"Esperando", "Escutando..."),
levando-nos a supor que, inversamente, não está atento à
sua própria vida. Sabemos também que se sente sozinho perante o universo imenso
("Fico sozinho com o universo inteiro"
- v. 8)
e que se sente recluso, como se estivesse preso na sua
própria casa ("Antes, recluso,
/ Num desejo de não ser recluso").
Entretanto, os advérbios de modo «ansiosamente» e «sonolentamente»
marcam, de forma contraditória, o seu estado de desassossego
e de atenção ao exterior. Finalmente, temos a noção de
que ele almeja «alguma coisa», o que é tanto mais inquietante e
angustiante quanto esse objeto de desejo é impreciso e
vago ("Esperando
/
Qualquer coisa antes que durma... /
Qualquer coisa... - vv. 21 -23).
5.
De entre os vários recursos estilísticos, podem ser
referidos:
- as
repetições
várias ao longo da composição que, para além de marcarem
o ritmo do poema e o ritmo interior do "eu", como já
vimos, ajudam também a compreender como se sente o
sujeito poético (vê o tempo a passar e a sua solidão e
angústia a acentuarem-se, razão que o leva a ambicionar
alcançar "qualquer coisa", algo de indefinido é certo,
mas que adivinhamos ser a paz de espírito;
- o/a
paradoxo/antítese
("Fico sozinho com o universo todo" - v. 8), a traduzir
o seu estado de inquietação e a sua imensa solidão;
- as
anáforas
(vv. 11-12 e vv. 22-23), a intensificarem o silêncio do
universo, com o qual o eu lírico se identifica, e
o seu enorme desejo de pretensamente ultrapassar a
situação de desintegração em que se encontra;
- a
epífora
ou
epístrofe
("...recluso", "...recluso" - vv. 13-14), com a
qual o sujeito poético enfatiza a ideia de que se sente
aprisionado dentro do seu próprio prédio, mas sugerindo
que prefere estar enclausurado e ser ele próprio do que
ter uma vida rotineira, vivendo por viver, como fazem os
outros;
- a
personificação
/ a
sinédoque
("Os duplos passos em conversa falam-me"
-
v. 17), para destacar as ressonâncias na sua alma
(sensação de abandono, de melancolia, de uma solidão
profunda), quando ouve/visualiza imageticamente os
passos de duas pessoas que passam na rua, conversando
(contrastivamente, ele não tem com quem conversar...);
- o
encavalgamento
ou
transporte
("Esperando
/ Qualquer coisa..." -
vv. 21-22), com o qual o sujeito poético quebra o ritmo
do poema e marca uma mudança no seu estado de espírito -
deseja deixar de ser quem é para passar a ser alguém
hipoteticamente mais feliz, embora não saiba como
processar essa mudança;
- a
gradação
descendente
("terceiro-andar", "segundo-andar", "rés-do-chão" vv.
4-6), através da qual o eu lírico expressa a ideia de
que, paulatinamente, de cima para baixo, se foi fazendo
silêncio no prédio onde habita. Por dedução, concluímos
que ele habita no primeiro-andar.
Nota 1:
se tiver dúvidas e quiser rever os recursos
estilísticos, abra
esta página.

6.
Sabendo que a primeira fase da evolução poética de Álvaro de Campos é a
fase decadentista, apenas documentada no poema Opiário,
e que a segunda fase (denomeada de futurista, sensacionista ou
whitmaniana) decorre sob a influência de Whitman, sendo a fase da
idealização poética industrial, com a sua vitalidade transbordante, o
seu amor ao ar livre e ao belo feroz e em que o sujeito poético se
encontra num estado de euforia, de alucinação, de neurose, pretendendo
sentir tudo de todas as maneiras, numa histeria de sensações, este poema
só pode integrar-se na terceira fase da evolução poética de Campos, a
fase independente ou pessoal, quando ele se mostra inquieto, nauseado,
cansado, abúlico, entediado, abatido, descontente de si e dos outros,
árido interiormente. Com efeito, nesta fase ele torna-se o poeta do
“tedium vitae”, devaneador, decaído, melancólico, irmão do Pessoa
ortónimo no cepticismo. Ora, é assim que o encontramos nesta composição.
Nota 2:
ver
aqui
análises ou leituras orientadas de outros poemas de
Fernando Pessoa e seus heterónimos.
Elaborado e
publicado por
Joaquim Matias da Silva
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Publicado por
Joaquim Matias da Silva
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