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Análise do poema
BICARBONATO DE SODA
(1)
Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio
(2)
e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no
estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa
(3)
no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,

“O Grito”,
pintura de Edvard Munch
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas
abertas!
Que verão agradável dos outros!
Dêem-me de beber, que não tenho sede!
(Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de
Campos,Lisboa, IN-CM, 1992)
Notas:
(1)
Bicarbonato de soda: medicamento que serve para aplacar
o enjoo causado pela ingestão de alimentos pesados.
(2)
Gládio: antiga espada curta, robusta, de lâmina larga
com dois gumes, usada especialmente pelos legionários
romanos; fig. poder, força.
(3)
esfalfa: causa cansaço; extenua.
(Fernando
Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos,Lisboa, IN-CM,
1992)
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
1.
Divida a composição poética nas suas possíveis partes
lógicas e faça uma síntese da mensagem poética de cada
uma delas.
2.
Descreva a imagem que o sujeito poético dá de si mesmo,
ilustrando-a com ideias e/ou expressões do texto.
3.
Ao longo da composição, somos confrontados com a
oposição eu/outros. Em conformidade com as ideias e
expressões aí presentes, clarifique esse tipo de
relação.
4.
Tendo em consideração as ideias expressas na composição
e o título da mesma, clarifique o paradoxo contido no
último verso.
5.
Identifique, exemplifique e explicite o valor de dois
recursos estilísticos presentes no texto em análise, os
quais servem de suporte à ênfase dada pelo sujeito
poético ao seu estado de recorrente angústia.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
A composição poética pode ser dividida em três partes
lógicas. A primeira corresponde à primeira estrofe, onde
o eu lírico confessa que foi atingido de forma
inesperada por uma angústia dilacerante, que corrói todo
o seu corpo até atingir o âmago do seu ser: “Ah, que
angústia, que náusea do estômago à alma!”. Perante este
estado de angústia, vê-se ironicamente sozinho! Com
efeito, não encontra apoio nos amigos (“Que amigos que
tenho tido!”), nem tão-pouco entre as gentes que povoam
as cidades: “Que vazias de tudo as cidades que tenho
percorrido!” Ele é, assim, um ser rejeitado, sentindo-se
um solitário no meio da multidão incógnita. Até os seus
anseios são metaforicamente identicados com o “esterco”;
logo, sem sentido, porque impuros, nojentos, sem razão
de ser.
Na segunda parte, que engloba as segunda, terceira,
quarta e quinta estrofes, o sujeito poético volta a
insistir na profunda angústia que o acometeu. Sente uma
desconsolação que é tão grande que se expande até à
superfície da sua alma: “Uma desconsolação da epiderme
da alma”. Completamente derrotado, desiste e renega tudo
aquilo que lhe poderia ainda servir de algum alívio:
“Renego mais do que tudo”. Entretanto, recorrendo a duas
perguntas retóricas, deixa transparecer a certeza de que
o vazio irrompeu por todo o seu ser: “Mas o que é que me
falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação
do sangue?/ Que atordoamento vazio me esfalfa no
cérebro?” . Mas será esse um motivo suficiente para
provocar a sua própria queda? Não, ainda é tempo de
resistir, de “existir”, de sobreviver, só que a
esperança numa regeneração não passa de mera ilusão:
“Renunciar de portas todas abertas”. Assim, sem
esperança e sem sentido, a sua existência contrasta de
forma notória com a alegria dos outros, pois as
“brisas”, as “portas” e as “janelas” abertas para o
mundo, ou seja, para tudo o que é agradável, cheio de
sol e de alegria, tudo isso tem um destino exclusivo –
os outros.
Na terceira parte, que compreende o último verso
(monóstico), há um apelo do eu lírico: já que está
condenado a viver numa angústia profunda, a ter uma
existêcia impregnada de solidão, de um vazio deprimente,
de uma desventura inaudita, então o melhor é darem-lhe o
bicarbonato de soda: “Dêem-me de beber…”. A sua sede não
é física (“… que não tenho sede!”), é essencialmente
psicológica e pode ser que o bicarbonato de soda consiga
mesmo aplacar o seu enjoo, o seu tedium vitae
exasperante.
2.
A imagem que o sujeito da enunciação deixa transparecer
de si próprio não é muito positiva. Com efeito, vemo-lo
invadido pela angústia, completamente entregue à sua
sorte madrasta, abandonado pelos pseudoamigos (“Que
amigos que tenho tido!”), com todas as expetativas
goradas (“Que esterco metafísico os meus propósitos
todos!), desiludido e desconsolado até ao âmago do seu
ser (“Uma desconsolação da epiderme da alma”). Não
admira, pois, que se deixe cair na abulia, numa
passividade mórbida (“Um deixar cair os braços ao
sol-pôr do esforço...”) e daí a renegação e o desprezo
que nutre por tudo aquilo que ainda poderia servir-lhe
como um lenitivo para a sua dor de alma (“Renego a
gládio e fim todos os Deuses e a negação deles”), sendo,
porém assolado por uma dúvida existencial: deverá
continuar a existir (que não a viver) ou suicidar-se?
Opta pela primeira hipótese, embora saiba de antemão,
roído por um pouco de inveja, diga-se, que tudo o que há
de bom na vida não é para si: “Que verão agradável dos
outros!”. Sem esperanças, sem encontrar uma lógica para
as coisas, lança um último apelo: pede para lhe darem a
beber o bicarbonato de soda. Não que tenha sede, porque
o seu problema não é de índole física, mas psicológica:
"Dêem-me de beber, que não tenho sede!".
E talvez, assim, consiga amenizar o seu sofrimento.

3.
Ao longo do texto, o sujeito poético deixa transparecer
a ideia de que há uma relação de distanciamento e de
nítido contraste entre a sua situação e a dos “outros”.
E fá-lo não sem evidenciar uma certa ironia, mescalada
de mágoa. E isso porque esperava, porventura, no meio
de tanta angústia, ter recebido mais solidariedade, mais
comprensão, mais apoio e carinho por parte dos seus
amigos, o que não se verificou. Daí o seu lamento
irónico - “Que amigos que tenho tido!” -, uma frase
exclamativa, onde o primerio “que” surge na sua
qualidade de advérbio de intensidade (= quantos),
intensificando, assim, o valor irónico da afirmação e,
logicamente, reforçando a ideia da sua solidão, que está
na origem da sua incontornável angústia. Na parte final
do poema, vislumbramos, entretanto, uma certa inveja do
eu da enunciação em relação aos “outros”, resultante das
situações antagónicas experienciadas: ele vive numa
amargura atroz, tendo perdido toda a esperança de
regeneração; os “outros” vivem (pelo menos ele pensa
isso) felizes, sem preocupações – “Que verão agradável
dos outros!”; ele, por seu lado, e por inferência,
não!...
4.
O último verso do poema contém um paradoxo, porque o eu
da enunciação pede para lhe darem de beber e,
concomitantemente, assevera que não tem sede. Estamos,
pois, perante uma frase aparentemente ilógica. Essa
ilogicidade poderá sugerir os estados de inquietação, de
confusão, de um quase delírio que corroem a alma do
sujeito poético, mas traduz preferencialmente a ideia de
alguém que, sentindo-se psicologicamente doente, pede
para lhe darem a beber bicarbonato de soda, com o óbvio
intuito de suavizar as suas dores. Dores morais que não
físicas – entenda-se – como já foi atrás referido, pois
ele, fisiologicamente falando, não está com sede, até
porque, como vimos no poema, reiteramente, tinha
afiançado a sua vontade de querer EXISTIR: “… vou
existir. Arre! Vou existir.. / E-xis-tir.../ E--xis--tir
...”.
5.
De entre os vários recursos estilísticos, podem ser
referidos: a
elipse
(v.1), que reforça a ideia de que o eu poético se sentiu
repentinamente angustiado; a
repetição anafórica
e a
exclamação
do v. 2 (“que angústia, que náusea do estômago à
alma!”), a intensificarem o seu estado de desespero, de
nojo de si mesmo, com implicações quer físicas quer
espirituais;
a
metáfora
(v.5), para reforçar a sensação de inutilidade e de
fracasso do eu lírico que vê todos os seus projetos
gorados; a
anáfora,
em crescendo (“Renego/ Renego tudo./ Renego mais do que
tudo.”), para acentuar o estado de negação do eu
da enunciação; as
interrogações retóricas
nos vv. 8 e 9, da 2.ª estrofe, a acentuarem a
perplexidade de um "eu" em completa desagregação;
as
oposições
que se podem inferir entre a vida passada, a vida
presente e a vida futura (vv. 3 e 9), sendo que o
passado foi enganador, como que vivido ficticiamente, o
presente é de negação e de um sofrimento atroz e o
futuro não se prevê muito risonho ("Sem esperança, em liberdade,
/
Sem nexo, /
Acidente da inconsequência da superfície das coisas"),
ainda que entremeado por alguns laivos de esperança em
melhores dias, resultantes mais de uma força de vontade
momentânea e inconsequente ("Não: vou existir. Arre! Vou existir.
/E-xis-tir... /
E--xis--tir ...") do
que de pressupostos coerentes e efetivamente tidos como
admissíveis ("Monótono mas dorminhoco,
/
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas
abertas! /
Que verão agradável dos outros!");
o
paradoxo
("Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?"
-
v. 15), a sugerir o estado de incerteza do sujeito
poético que quer ultrapassar a situação lastimável em
que vive, mas que ao mesmo tempo se interroga sobre se
valerá a pena fazê-lo; a
anáfora
("Sem.../ Sem..." - vv.23-24,
a enfatizar o estado de privação total, própria de um
ser desesperado, a viver um e em tedium vitae
debilitante porque o "verão agradável" (v. 27) não é seu
nem para si, é dos "outros" (v. 27).
Nota 1:
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estilísticos, abra
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Nota 2:
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