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Fernando Pessoa

 

Análise do poema

 

O MISTÉRIO DAS COUSAS, ONDE ESTÁ ELE?

 

O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.


Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:

As cousas não têm significação: têm existência.

As cousas são o único sentido oculto das cousas.


 

Alberto Caeiro, "O Guardador de Rebanhos", in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

Análise / Leitura orientada

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.
1. Explicite a relação que se estabelece entre o desenvolvimento do tema e a estrutura estrófica do poema.

2. Refira um dos efeitos de sentido produzidos pelas interrogações presentes na primeira estrofe.
3. Interprete as referências aos "poetas" (v. 11) e aos filósofos (v. 12)
4. Tendo em conta, nomeadamente, os versos 14 e 15, explique como se constrói a aprendizagem do "eu".
5. Comente a importância do último verso enquanto conclusão do texto.
 

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

 

1. O poema organiza-se em três momentos, correspondendo globalmente cada um deles a uma estrofe, cujo subtema ou mote é enunciado nos versos de abertura: "O mistério das cousas, onde está ele? / Onde está ele que não aparece."

Assim, o poema inicia-se com a identificação de um problema ("O mistério das cousas, onde está ele?"), glosado na primeira estrofe.

Depois, temos o argumento que desconstrói esse problema, argumento esse que é enunciado pelos dois versos iniciais da segunda estrofe ("Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum.") e que é expandido ao longo desta estrofe medial.

Finalmente, o primeiro verso da terceira estrofe ("Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —") anuncia a conclusão, formulada como um resumo do raciocínio precedente.

 

 

2. As interrogações presentes na primeira estrofe (vv. 1-5) produzem, entre outros, os seguintes efeitos de sentido: conferem vivacidade ao discurso poético, destacando cada um dos elementos da cadeia do raciocínio; suscitam o interesse pelo problema apresentado, pois o tom coloquial utilizado pelo sujeito lírico (recorde-se que esse tom coloquial é muito próprio da linguagem espontânea, uma linguagem que vem ao encontro da simplicidade, da espontaneidade de Alberto Caeiro, um heterónimo que viveu quase toda a vida no campo e que "não teve educação literária para além da 4.ª classe"; e marcam mudanças de enfoque na argumentação (reduzindo ao absurdo o problema colocado ou questionando a existência de um saber com capacidade de o resolver).

Mas as interrogações aqui presentes também poderão sugerir a perplexidade do sujeito poético face à constatação de que há quem acredite no "mistério das cousas". Para ele, só o facto de pensar nisso faz com que ele se ria - riso irónico, sarcástico, de desdém mesmo ("Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, / Rio como um regato que soa fresco numa pedra" - vv. 6-7), pois o Guardador de Rebanhos, o poeta do objetivismo absoluto proclama-se, como não podia deixar de ser, antimetafisico, assumindo-se contra a interpretação do real pela inteligência, porque essa interpretação reduziria as coisas a simples conceitos vazios: "É mais estranho do que todas as estranhezas / E do que os sonhos de todos os poetas / E os pensamentos de todos os filósofos, / Que as cousas sejam realmente o que parecem ser / E não haja nada que compreender"  - vv. 10-14. O seu realismo sensualístico-nominalístico não quer saber de ideias para coisa nenhuma. Ter ideias, investigar significados ocultos, sondar mistérios, tudo isso é "doentio", ''mórbido", porque afasta da vida. Na realidade há só este valor: existir: "As cousas não têm significação: têm existência" - v. 16.
 

3. Os "poetas" a os "filósofos", sujeitos da busca de sentido oculto para as "cousas", são mencionados como pontos de comparação relativamente à estranheza das "cousas" sem "sentido oculto nenhum". É que nem os "poetas" nem os "filósofos" conseguem atingir, pelos seus "sonhos" ou pelos seus "pensamentos", a simples existência das "cousas". Com efeito, ambos procuram "compreender" aquilo que, para Caeiro, apenas tem "existência".  Na verdade, para o "Argunauta das sensações verdadeiras", aquilo que não se pode interromper, isto é, a corrente da vida, não se deve procurar suspender. Pensar é supérfluo, o que é preciso é caminhar de olhos abertos. Daí que, no seu tom sonoro habitual, entre em polémica com os poetas e filósofos que procuram um sentido oculto "para além" das coisas. "Aprendei a viver!", grita-lhes repetidamente.

 

4. O verso catorze remata o discurso sobre a estranheza de as "cousas" "não terem sentido oculto nenhum", mencionando o facto de não haver "nada que compreender" como a maior de todas as "estranhezas". O sentido desta afirmação clarifica-se no verso seguinte ("Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —"). Efetivamente, o  eu lírico apresenta-se como o poeta das sensações estremes: "A sensação é tudo e o pensamento é uma doença". Por sensação entende Caeiro a "sensação das coisas tais como são, sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da alma" – eliminação de todos os vestígios de subjetividade. E a circunstância de as "cousas" não ocultarem mistérios corresponde a uma aprendizagem do "eu", construída através da simples apreensão dos sentidos, sem interferência da compreensão intelectual.

 

5. O verso "As cousas são o único sentido oculto das cousas." encerra a questão da "significação" das "cousas", que se coloca ao longo do poema, dando resposta definitiva à interrogação lançada no primeiro verso.

A negação da existência de "sentido oculto" nas "cousas", inscrita nos versos 8-9 ("Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum"), surge reformulada neste verso, que convoca outros temas do texto, nomeadamente, a estranheza da coincidência entre o ser e o parecer das "cousas" (v. 13) e a sua simples existência sem "significação" (v. 16).

Deste modo, o verso "As cousas são o único sentido oculto das cousas." quer dizer que o "sentido oculto" das "cousas" reside no existir, sem "significação", das "cousas" em si mesmas, tal como se apresentam aos  e pelos sentidos.

 

Nota: ver aqui análises ou leituras orientadas de outros poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos.

Escrito e publicado, com adaptações, por

Joaquim Matias da Silva

 

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Boas leituras e bom estudo.

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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