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Análise do poema
O MISTÉRIO DAS COUSAS, ONDE ESTÁ ELE?
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens
pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
—
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

Alberto
Caeiro, "O Guardador de Rebanhos", in Poesia, Lisboa,
Assírio & Alvim, 2001
Análise / Leitura orientada
QUESTIONÁRIO:
Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas
ao questionário.
1.
Explicite a relação que se estabelece entre o
desenvolvimento do tema e a estrutura estrófica do
poema.
2.
Refira um dos efeitos de sentido produzidos pelas
interrogações presentes na primeira estrofe.
3.
Interprete as referências aos "poetas" (v. 11) e aos
filósofos (v. 12)
4.
Tendo em conta, nomeadamente, os versos 14 e 15,
explique como se constrói a aprendizagem do "eu".
5.
Comente a importância do último verso enquanto conclusão
do texto.
CENÁRIOS DE RESPOSTA:
1.
O poema organiza-se em três momentos, correspondendo
globalmente cada um deles a uma estrofe, cujo subtema ou
mote é enunciado nos versos de abertura: "O
mistério das cousas, onde está ele? / Onde está ele que
não aparece."
Assim, o poema inicia-se com a identificação de um
problema ("O mistério das cousas, onde está ele?"),
glosado na primeira estrofe.
Depois, temos o argumento que desconstrói esse problema,
argumento esse que é enunciado pelos dois versos
iniciais da segunda estrofe ("Porque o único sentido
oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto
nenhum.") e que é expandido ao longo desta estrofe
medial.
Finalmente, o primeiro verso da terceira estrofe ("Sim,
eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —")
anuncia a conclusão, formulada como um resumo do
raciocínio precedente.

2.
As interrogações presentes na primeira estrofe (vv. 1-5)
produzem, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:
conferem vivacidade ao discurso poético, destacando cada
um dos elementos da cadeia do raciocínio; suscitam o
interesse pelo problema apresentado, pois o tom
coloquial utilizado pelo sujeito lírico (recorde-se que
esse tom coloquial é muito próprio da linguagem
espontânea, uma linguagem que vem ao encontro da
simplicidade, da espontaneidade de Alberto Caeiro, um
heterónimo que viveu quase toda a vida no campo e que
"não teve educação literária para além da 4.ª classe"; e
marcam mudanças de enfoque na argumentação (reduzindo ao
absurdo o problema colocado ou questionando a existência
de um saber com capacidade de o resolver).
Mas as interrogações aqui presentes também poderão
sugerir a perplexidade do sujeito poético face à
constatação de que há quem acredite no "mistério das
cousas". Para ele, só o facto de pensar nisso faz com
que ele se ria - riso irónico, sarcástico, de desdém
mesmo ("Sempre
que olho para as cousas e penso no que os homens pensam
delas, / Rio como um regato que soa fresco numa pedra" -
vv. 6-7), pois o Guardador de Rebanhos, o poeta do
objetivismo absoluto proclama-se, como não podia deixar
de ser, antimetafisico, assumindo-se contra a
interpretação do real pela inteligência, porque essa
interpretação reduziria as coisas a simples conceitos
vazios: "É mais estranho do que todas as estranhezas / E
do que os sonhos de todos os poetas / E os pensamentos
de todos os filósofos, / Que as cousas sejam realmente o
que parecem ser / E não haja nada que compreender"
- vv.
10-14. O seu realismo sensualístico-nominalístico não
quer saber de ideias para coisa nenhuma. Ter ideias,
investigar significados ocultos, sondar mistérios, tudo
isso é "doentio", ''mórbido", porque afasta da vida. Na
realidade há só este valor: existir: "As cousas não têm
significação: têm existência" - v. 16.
3.
Os "poetas" a os "filósofos", sujeitos da busca de
sentido oculto para as "cousas",
são mencionados como pontos de comparação relativamente
à estranheza das "cousas" sem "sentido oculto nenhum". É
que nem os "poetas" nem os "filósofos" conseguem
atingir, pelos seus "sonhos" ou pelos seus
"pensamentos", a simples existência das "cousas". Com
efeito, ambos procuram "compreender" aquilo que, para
Caeiro, apenas tem "existência". Na verdade, para
o "Argunauta das sensações verdadeiras", aquilo que não
se pode interromper, isto é, a corrente da vida, não se
deve procurar suspender. Pensar é supérfluo, o que é
preciso é caminhar de olhos abertos. Daí que, no seu tom
sonoro habitual, entre em polémica com os poetas e
filósofos que procuram um sentido oculto "para além" das
coisas. "Aprendei a viver!", grita-lhes repetidamente.
4.
O verso catorze remata o discurso sobre a estranheza de
as "cousas" "não terem sentido oculto nenhum",
mencionando o facto de não haver "nada que compreender"
como a maior de todas as "estranhezas". O sentido desta
afirmação clarifica-se no verso seguinte ("Sim, eis o
que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —").
Efetivamente, o eu lírico apresenta-se como o
poeta das sensações estremes: "A sensação é tudo e o
pensamento é uma doença". Por sensação entende Caeiro a
"sensação das coisas tais como são, sem acrescentar
quaisquer elementos do pensamento pessoal, convenção,
sentimento ou qualquer outro lugar da alma" – eliminação
de todos os vestígios de subjetividade. E a
circunstância de as "cousas" não ocultarem mistérios
corresponde a uma aprendizagem do "eu", construída
através da simples apreensão dos sentidos, sem
interferência da compreensão intelectual.
5.
O verso "As cousas são o único sentido oculto das
cousas." encerra a questão da "significação" das
"cousas", que se coloca ao longo do poema, dando
resposta definitiva à interrogação lançada no primeiro
verso.
A negação da existência de "sentido oculto" nas
"cousas", inscrita nos versos 8-9 ("Porque
o único sentido oculto das cousas / É elas não terem
sentido oculto nenhum"),
surge reformulada neste verso, que convoca outros temas
do texto, nomeadamente, a estranheza da coincidência
entre o ser e o parecer das "cousas" (v. 13) e a sua
simples existência sem "significação" (v. 16).
Deste modo, o verso "As cousas são o único sentido
oculto das cousas." quer dizer que o "sentido oculto"
das "cousas" reside no existir, sem "significação", das
"cousas" em si mesmas, tal como se apresentam aos
e pelos sentidos.
Nota:
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aqui
análises ou leituras orientadas de outros
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Escrito e publicado, com adaptações, por
Joaquim Matias da Silva
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Publicado por
Joaquim Matias da Silva
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