Representa a moça casadoira, fútil, muito preguiçosa e
interesseira, que se casa duas vezes, apenas para se
livrar do tédio da vida de solteira. Não conseguindo
casar-se, como sonhava, numa primeira tentativa, garante-se numa segunda,
com um marido ingénuo. Essa rejeição inicial a Pêro
Marques ocorre, pois a Inês sonhadora queria um homem com
caraterísticas palacianas, que fosse "discreto",
soubesse cantar, jogar bola, tocar violão,
"virtualidades" que Pêro Marques nunca teria, ao
contrário do Escudeiro.
Mas quando fica com o Escudeiro, logo vê a outra face do
seu marido: vê-se proibida de cantar, de conversar e é colocada em
clausura.
Entretanto, indo para a Guerra, o Escudeiro é morto por
um simples pastor árabe, ao tentar fugir
como um covarde do campo da batalha, mostrando a contradição entre
o seu comportamento de macho
dentro de casa e a covardia na guerra. Inês fica feliz com
a morte do marido e, já amadurecida com o destino que
lhe coubera, casa-se agora com Pêro Marques, pensando de
imedito em traí-lo com um ermitão que lhe aparece pedindo esmola,
homem que fora um seu antigo namorado e por quem ainda
se sentia atraída fisicamente.
Apesar de seu comportamento impróprio, consegue,
paradoxalmente, conquistar a simpatia do público pela inteligência com que
planeia os seus passos.
Como já vimos, é a personagem
fundamental, o elo de ligação entre os dois braços do
provérbio que serviu de pretexto para a construção da
peça. Assim, Gil Vicente soube usar da dramaturgia para
ilustrar o tal provérbio: o Escudeiro, referindo-se ao
Cavalo; e Pêro Marques, ao Asno.
Inês, a primeira Inês, a Inês solteira, é, por um lado, preguiçosa,
alegre, amiga de divertir-se, um pouco leviana e
opiniosa. Mas, por outro lado, não exige luxos nem riquezas.
Quer um homem que lhe proporcione uma vida alegre, ainda
que pobre. A segunda Inês, casada em primeiras
núpcias, estranha as imposições do marido, mas está
pronta a obedecer-lhe e a ser-lhe fiel. A terceira Inês,
a Inês de Pêro Marques, é o resultado duma transformação
profunda provocada pelo comportamento desumano, desleal
e cínico do Escudeiro. É uma mulher que já não acredita
no amor nem nos homens. O seu desejo de vingança
transforma Pêro Marques num superasno quase irreal. Em
última instância, ela porta-se mal por amor ao
Escudeiro. O seu comportamento não é aprovável, nem tal
pretende Mestre Gil, mas torna-se compreensível ao olhar
tolerante da sociedade quinhentista e, até, da atual.
Pêro
Marques
É um marido bobo, mas um lavrador abastado. Apesar de
ser ridicularizado por Inês, casa-se com ela e deixa-se
maltratar e trair. Com a sua estupidez e
ingenuidade não só é um ser feliz, mas espalha
felicidade à sua roda. É o antiquíssimo servo da gleba,
resgatado por um trabalho árduo e permanente que lhe
permitiu amealhar, ao longo de anos e gerações, alguns
cobres enegrecidos pelo seu suor. Este pacóvio honesto
era necessário para encarnar o asno serviçal. Menos
caricatural do que à primeira vista pode parecer, Pêro
Marques é, no entanto, a personagem cómica da peça.
Mãe
Apesar de dar conselhos à filha, acha importante que ela
não fique solteira e torna-se cúmplice das suas
atitudes. É a boa conselheira e a confidente. Luta
quanto pode pela felicidade da filha iludida, o que
torna Inês mais responsável pela sua escolha e mais
trágico o seu arrependimento. Extremamente compreensiva,
acaba, como se constata, por aceitar corajosamente a
derrota e animar a primeira boda com uma festa adequada.
Depois, afasta-se discretamente para não tornar a
aparecer. Evitam-se assim censuras, acusações,
discussões com a filha. Inês há-de aprender à sua custa.
Lianor Vaz
Tem sido injustamente metida no rol das alcoviteiras.
Mas Gil Vicente transformou a odiosa alcoviteira numa
honesta comadre casamenteira para que ela pudesse
dignamente emparceirar com Pêro Marques – a mesma
honestidade, a mesma boa-fé – e mostrar superioridade
sobre os judeus casamenteiros. Faz também um pouco o
papel de confidente e ajuda-nos a conhecer os
sentimentos e intenções de Inês e de Pêro, isto é, o
programa da farsa. Lianor é uma figura de apreciável
valor moral, com bons e subtis conhecimentos da sua
«arte». Falta-lhe porém agudeza crítica e psicológica
para bem cumprir a difícil missão de alcoviteira. Não é
ela, com efeito, que convence Inês a casar com Pêro
Marques. Neste aspeto é nitidamente inferior aos judeus
casamenteiros.
Escudeiro
Preocupado em encontrar uma esposa, finge e
engana, criando uma imagem de "bom moço" que
depois se desmascara em tirano, deixando Inês
presa na sua casa. Para gáudio da esposa
(bem disfarçado, mas não menos notório), é
morto por um pastor mouro, quando,
cobardemente, foge do campo de batalha.
Esta figura é, no seu exagero,
importantíssima na peça. É a atuação do
Escudeiro que fabrica indiretamente Pêro
Marques. Por isso, é ele o grande impulsionador dramático
que transforma e transtorna Inês, a qual,
possuída de recalcado ódio, vai explorar
finalmente a
ingenuidade e o amor de Pêro até às últimas
consequências. Ela vinga em Pêro o seu
traído amor pelo Escudeiro.
Moço
Era um amigo do primeiro marido de Inês,
ajudando-o a manter a máscara, mentindo,
para que ele pudesse casar-se com Inês. O
Moço é a cópia em plebeu do Escudeiro. Por
ele, conhecemos a vida, os sentimentos e
intenções do amo: é como que um
confidente. Por ele, se continua a ação
irritante e provocante do amo sobre Inês e
se atiça a vingança desta sobre Pêro, o
asno. Exerce, pois, uma influência complementar
à do
Escudeiro, sendo a sombra infernal do patrão
que embarcou para Marrocos.
Ermitão
Era o amante de Inês que, depois, se torna num
padre. É uma personagem secundária,
perfeitamente dispensável. Os eremitas,
anacoretas ou monges viviam num ermo para se
dedicarem exclusivamente ao serviço de Deus
e à salvação das almas. Eram pessoas de
profundos sentimentos religiosos que
acabaram por reunir-se em claustros,
originando o estado monástico, sobretudo as
ordens mendicantes. Porém, muitos falsos
eremitas se aproveitaram da fé e da
ingenuidade dos crentes, esmolando e vivendo
parasitariamente. Tudo Ieva a crer que o
nosso Ermitão pertencia a esta casta. Deste
modo, a sátira vicentina atinge
prioritariamente a sociedade e não a
religião, o que não espanta, sabida a
predileção do rei D. Manuel pelos Jerónimos
e o impulso que às ordens mendicantes deu em
Portugal a sua segunda esposa, D. Maria.
Ora, a Gil Vicente não dava honra nem proveito entrar em
conflito com o Rei, nem com a sua Real
Consorte. Então por que teria ele
escolhido o Ermitão para alvo da sua
crítica?
Em primeiro lugar Gil Vicente queria
apresentar concretamente ao público o asno a
transportar Inês. Para isso, tinha de haver um
caminho a percorrer e a Ermida vinha a
preceito. Em segundo lugar, tratando-se duma
jornada religiosa, o marido de Inês podia
acompanhá-la sem suspeitar de nada. Depois,
andando o Ermitão a pedir de porta em porta,
era fácil e natural o seu encontro com Inês,
pelo que o Ermitão salvava a verosimilhança.
Havia, ainda, a opinião (ou a conveniência!),
partilhada por boa parte da sociedade
inculta,
de que as relações com gente da Igreja não
eram pecaminosas, opinião aliás já sugerida
por um clérigo no verso 161 da farsa: «Isso
não releva nada». Finalmente, o nosso mestre
dramaturgo arranjou uma oportunidade para
criticar os falsos religiosos.
Os judeus casamenteiros: Latão e Vidal
Os judeus casamenteiros, Latão e Vidal, são
talvez as figuras psicologicamente mais bem
tratadas da peça. Não são imorais, mas
amorais. Conheciam bem os defeitos do
Escudeiro, mas também não ignoravam que Inês
era preguiçosa, vaidosa e leviana. Por isso
zombam dos dois, jogando com os seus
defeitos. As suas palavras, em catadupa,
elogiam e depreciam ao mesmo tempo,
revelando um pessimismo consciente sobre os
homens. Têm externamente uma atitude
bajuladora, mas na verdade as suas
afirmações podem ser entendidas como
críticas severas e justas. Inteligentes e
voluntariosos, adaptam-se a todas as
atividades e vingam-se, em ferroadas
discretas, de séculos de iníqua perseguição.
Na sua versatilidade e penetração
psicológica estão mais próximos da
alcoviteira típica do que Lianor Vaz. Tipos
tirados da realidade quotidiana, os judeus
por aí andam ainda, menos casamenteiros mas
não menos desonestos.
Fernando e Luzia
Formam um oásis de bondade e de pureza, de
simplicidade e de ternura na seca
perversidade da peça. São uma espécie de
ideal de vida – sem ambições, nem maldades.
As suas palavras são de amizade e de
esperança, mas as suas canções são de
desencanto e morte.
Fruto de uma espécie de admiração por eles
ou então de um desejo secreto de ter sido
como eles,
parece entrever-se em Inês, a garça ferida,
um momento fugaz de comoção, um vago
arrependimento e pressentimento. Mas isso -
malvado Escudeiro! – não há de persistir nem
frutificar.