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Farsa de Inês Pereira

 

- Personagens -

 

(Página ainda em construção)

 

PERSONAGENS

Respetiva caraterização

  Inês Pereira

 

 

Representa a moça casadoira, fútil, muito preguiçosa e interesseira, que se casa duas vezes, apenas para se livrar do tédio da vida de solteira. Não conseguindo casar-se, como sonhava, numa primeira tentativa, garante-se numa segunda, com um marido ingénuo. Essa rejeição inicial a Pêro Marques ocorre, pois a Inês sonhadora queria um homem com caraterísticas palacianas, que fosse "discreto", soubesse cantar, jogar bola, tocar violão, "virtualidades" que Pêro Marques nunca teria, ao contrário do Escudeiro.

Mas quando fica com o Escudeiro, logo vê a outra face do seu marido: vê-se proibida de cantar, de conversar e é colocada em clausura.

Entretanto, indo para a Guerra, o Escudeiro é morto por um simples pastor árabe, ao tentar fugir como um covarde do campo da batalha, mostrando a contradição entre o seu comportamento de macho dentro de casa e a covardia na guerra. Inês fica feliz com a morte do marido e, já amadurecida com o destino que lhe coubera, casa-se agora com Pêro Marques, pensando de imedito em traí-lo com um ermitão que lhe aparece pedindo esmola, homem que fora um seu antigo namorado e por quem ainda se sentia atraída fisicamente.
Apesar de seu comportamento impróprio, consegue, paradoxalmente, conquistar a simpatia do público pela inteligência com que planeia os seus passos.

Como já vimos, é a personagem fundamental, o elo de ligação entre os dois braços do provérbio que serviu de pretexto para a construção da peça. Assim, Gil Vicente soube usar da dramaturgia para ilustrar o tal provérbio: o Escudeiro, referindo-se ao Cavalo; e Pêro Marques, ao Asno.
Inês, a primeira Inês, a Inês solteira, é, por um lado, preguiçosa, alegre, amiga de divertir-se, um pouco leviana e opiniosa. Mas, por outro lado, não exige luxos nem riquezas. Quer um homem que lhe proporcione uma vida alegre, ainda que pobre. A segunda Inês, casada em primeiras núpcias, estranha as imposições do marido, mas está pronta a obedecer-lhe e a ser-lhe fiel. A terceira Inês, a Inês de Pêro Marques, é o resultado duma transformação profunda provocada pelo comportamento desumano, desleal e cínico do Escudeiro. É uma mulher que já não acredita no amor nem nos homens. O seu desejo de vingança transforma Pêro Marques num superasno quase irreal. Em última instância, ela porta-se mal por amor ao Escudeiro. O seu comportamento não é aprovável, nem tal pretende Mestre Gil, mas torna-se compreensível ao olhar tolerante da sociedade quinhentista e, até, da atual.

 

Pêro Marques

 

É um marido bobo, mas um lavrador abastado. Apesar de ser ridicularizado por Inês, casa-se com ela e deixa-se maltratar e trair. Com a sua estupidez e ingenuidade não só é um ser feliz, mas espalha felicidade à sua roda. É o antiquíssimo servo da gleba, resgatado por um trabalho árduo e permanente que lhe permitiu amealhar, ao longo de anos e gerações, alguns cobres enegrecidos pelo seu suor. Este pacóvio honesto era necessário para encarnar o asno serviçal. Menos caricatural do que à primeira vista pode parecer, Pêro Marques é, no entanto, a personagem cómica da peça.

 

Mãe

 

Apesar de dar conselhos à filha, acha importante que ela não fique solteira e torna-se cúmplice das suas atitudes. É a boa conselheira e a confidente. Luta quanto pode pela felicidade da filha iludida, o que torna Inês mais responsável pela sua escolha e mais trágico o seu arrependimento. Extremamente compreensiva, acaba, como se constata, por aceitar corajosamente a derrota e animar a primeira boda com uma festa adequada. Depois, afasta-se discretamente para não tornar a aparecer. Evitam-se assim censuras, acusações, discussões com a filha. Inês há-de aprender à sua custa.

 

Lianor Vaz

 

Tem sido injustamente metida no rol das alcoviteiras. Mas Gil Vicente transformou a odiosa alcoviteira numa honesta comadre casamenteira para que ela pudesse dignamente emparceirar com Pêro Marques – a mesma honestidade, a mesma boa-fé – e mostrar superioridade sobre os judeus casamenteiros. Faz também um pouco o papel de confidente e ajuda-nos a conhecer os sentimentos e intenções de Inês e de Pêro, isto é, o programa da farsa. Lianor é uma figura de apreciável valor moral, com bons e subtis conhecimentos da sua «arte». Falta-lhe porém agudeza crítica e psicológica para bem cumprir a difícil missão de alcoviteira. Não é ela, com efeito, que convence Inês a casar com Pêro Marques. Neste aspeto é nitidamente inferior aos judeus casamenteiros.

 

Escudeiro

 

Preocupado em encontrar uma esposa, finge e engana, criando uma imagem de "bom moço" que depois se desmascara em tirano, deixando Inês presa na sua casa. Para gáudio da esposa (bem disfarçado, mas não menos notório), é morto por um pastor mouro, quando, cobardemente, foge do campo de batalha.
Esta figura é, no seu exagero, importantíssima na peça. É a atuação do Escudeiro que fabrica indiretamente Pêro Marques. Por isso, é ele o grande impulsionador dramático que transforma e transtorna Inês, a qual, possuída de recalcado ódio, vai explorar finalmente a ingenuidade e o amor de Pêro até às últimas consequências. Ela vinga em Pêro o seu traído amor pelo Escudeiro.
 

  Moço

 

Era um amigo do primeiro marido de Inês, ajudando-o a manter a máscara, mentindo, para que ele pudesse casar-se com Inês. O Moço é a cópia em plebeu do Escudeiro. Por ele, conhecemos a vida, os sentimentos e intenções do amo: é como que um confidente. Por ele, se continua a ação irritante e provocante do amo sobre Inês e se atiça a vingança desta sobre Pêro, o asno. Exerce, pois, uma influência complementar à do Escudeiro, sendo a sombra infernal do patrão que embarcou para Marrocos.
 

  Ermitão

 

Era o amante de Inês que, depois, se torna num padre. É uma personagem secundária, perfeitamente dispensável. Os eremitas, anacoretas ou monges viviam num ermo para se dedicarem exclusivamente ao serviço de Deus e à salvação das almas. Eram pessoas de profundos sentimentos religiosos que acabaram por reunir-se em claustros, originando o estado monástico, sobretudo as ordens mendicantes. Porém, muitos falsos eremitas se aproveitaram da fé e da ingenuidade dos crentes, esmolando e vivendo parasitariamente. Tudo Ieva a crer que o nosso Ermitão pertencia a esta casta. Deste modo, a sátira vicentina atinge prioritariamente a sociedade e não a religião, o que não espanta, sabida a predileção do rei D. Manuel pelos Jerónimos e o impulso que às ordens mendicantes deu em Portugal a sua segunda esposa, D. Maria. Ora, a Gil Vicente não dava honra nem proveito entrar em conflito com o Rei, nem com a sua Real Consorte. Então por que teria ele escolhido o Ermitão para alvo da sua crítica?

Em primeiro lugar Gil Vicente queria apresentar concretamente ao público o asno a transportar Inês. Para isso, tinha de haver um caminho a percorrer e a Ermida vinha a preceito. Em segundo lugar, tratando-se duma jornada religiosa, o marido de Inês podia acompanhá-la sem suspeitar de nada. Depois, andando o Ermitão a pedir de porta em porta, era fácil e natural o seu encontro com Inês, pelo que o Ermitão salvava a verosimilhança. Havia, ainda, a opinião (ou a conveniência!), partilhada por boa parte da sociedade inculta,  de que as relações com gente da Igreja não eram pecaminosas, opinião aliás já sugerida por um clérigo no verso 161 da farsa: «Isso não releva nada». Finalmente, o nosso mestre dramaturgo arranjou uma oportunidade para criticar os falsos religiosos.
 

  Os judeus casamenteiros: Latão e Vidal

 

Os judeus casamenteiros, Latão e Vidal, são talvez as figuras psicologicamente mais bem tratadas da peça. Não são imorais, mas amorais. Conheciam bem os defeitos do Escudeiro, mas também não ignoravam que Inês era preguiçosa, vaidosa e leviana. Por isso zombam dos dois, jogando com os seus defeitos. As suas palavras, em catadupa, elogiam e depreciam ao mesmo tempo, revelando um pessimismo consciente sobre os homens. Têm externamente uma atitude bajuladora, mas na verdade as suas afirmações podem ser entendidas como críticas severas e justas. Inteligentes e voluntariosos, adaptam-se a todas as atividades e vingam-se, em ferroadas discretas, de séculos de iníqua perseguição. Na sua versatilidade e penetração psicológica estão mais próximos da alcoviteira típica do que Lianor Vaz. Tipos tirados da realidade quotidiana, os judeus por aí andam ainda, menos casamenteiros mas não menos desonestos.
 

Fernando e Luzia

 

Formam um oásis de bondade e de pureza, de simplicidade e de ternura na seca perversidade da peça. São uma espécie de ideal de vida – sem ambições, nem maldades. As suas palavras são de amizade e de esperança, mas as suas canções são de desencanto e morte.

Fruto de uma espécie de admiração por eles ou então de um desejo secreto de ter sido como eles, parece entrever-se em Inês, a garça ferida, um momento fugaz de comoção, um vago arrependimento e pressentimento. Mas isso - malvado Escudeiro! – não há de persistir nem frutificar.

 

 

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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