O conto é uma narrativa (história) curta, em que se
condensa uma intriga breve, de enredo simples e linear,
caracterizado por uma forte concentração da diegese, do
tempo e do espaço. As personagens envolvidas são em
número reduzido e escassos são também os elementos
típicos da narração e da descrição. Focando
essencialmente um episódio, um caso humano, uma situação
exemplar, uma recordação, a arte da sugestão ganha aí,
pois, grande relevo, aproximando muitas vezes o conto da
poesia. “Sendo normalmente linear, sem consentir a
inserção das intrigas secundárias que o romance admite,
a acção do conto precisamente nessa concentração e nessa
linearidade a sua capacidade de seduzir o receptor,
sedução mais intensa e conseguida quando existe uma
intriga com um mistério a resolver.”
Catarina Wallenstein, in Singularidades de uma
Rapariga Loura, um filme de Manuel de Oliveira.
Ora, todas estas peculiaridades podem ser descortinadas
no conto queirosiano Singularidades de uma Rapariga
Loura. Com efeito, a acção deste conto resume-se em
poucas palavras. Trata-se de uma história de amor de um
jovem honesto e trabalhador, Macário, por uma rapariga
loira que "Tinha
o carácter louro como o cabelo - se é certo que o louro
é uma cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre
com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo «pois sim»;
era muito simples, quase indiferente, cheia de
transigências".
É por esta rapariga, de nome Luísa, aparentemente dócil
e sem vontade própria, por quem Macário se apaixona, a
ponto de ser obrigado a sair de casa de seu tio
Francisco, onde trabalhava como guarda-livros, e ir até
Cabo Verde em negócios, só para merecer a mão de Luísa.
No entanto, Luísa é, de facto, uma rapariga loura e
singular.
É uma história que se organiza em diversas
sequências temporais configurando situações
diferentes. Assim, num primeiro momento,
encontramos Macário como guarda-livros, a
trabalhar na casa comercial do seu tio
Francisco, que se deixa enredar nas teias da
paixão, enamorando-se (numa espécie de amor à
primeira vista) por
uma rapariga
loura que vem morar em frente do prédio que
habita. Num segundo momento, vemos Macário sem
dinheiro e procurando emprego, porque o seu tio, numa
atitude intransigente, tinha-se mostrado contra o
casamento, expulsando-o de casa e arrastando-o para o
flagelo do desemprego, dado que todas as portas se
tinham fechado para este guarda-livros experimentado e
diligente, depois de malévolas interferências do tio,
junto dos seus colegas de ofício. Num terceiro momento,
relata-se a partida de Macário para Cabo Verde, numa
comissão de serviço, e o seu posterior regresso, bem
sucedido, com dinheiro suficiente que lhe permitia
tornar-se, agora, noivo de Luísa. Num quarto momento,
somos surpreendidos com Macário novamente pobre, por, a
instâncias veementes de um amigo malfazejo e
mal-intencionado, ter servido de fiador de uma loja de
ferragens, cujo negócio depressa se esfuma, sendo que
Macário não deixa de honrar a sua palavra, pagando todo
o dinheiro da fiança, com óbvios prejuízos particulares,
hipotecando mesmo as suas intenções de contrair
matrimónio com a amada “rapariga loura”. Num quinto
momento, conta-se a readmissão de Macário na casa do tio
Francisco, que talvez levado pelo remorso e, certamente
por uma grande afeição, nunca perdera o rasto da
situação em que vivia o sobrinho, reconhecendo-lhe o
carácter honrado e acabando até, de forma condescendente
e atirando às ortigas o seu amor-próprio, por dar
autorização ao sobrinho para se casar. Finalmente, num
sexto momento, dá-se o triste desenlace – Macário
descobre que a sua noiva é uma cleptómana, quando, numa
ourivesaria, ela rouba um anel. Como homem de bem,
Macário paga o anel e desdobra-se em pedidos de
desculpa, não descompondo em público a mulher por quem
faria tudo, menos aceitar o seu “carácter louro como o
cabelo”. O leitor, entretanto, já tinha tido indícios
desta nevrose mental em que predomina o desejo
irresistível de furtar de Luísa, que, deste modo, lança
às malvas a sua boa “sorte”. Na verdade, não falta(va)m
pormenores e algumas peripécias que se destaca(va)m na
linha evolutiva do conto e que funciona(va)m como sinais
do que iria acontecer. É o que sucede com o pormenor do
vistoso leque usado por Luísa – objecto demasiado rico
para não se estranhar a sua posse em gente de parcos
recursos financeiros – e com as peripécias dos
desaparecimentos: primeiro, dos lenços da Índia, na
loja; e depois, de uma moeda, uma peça de ouro, numa
noite de convívio e jogo, em casa de Luísa.
Uma cena de Singularidades de uma Rapariga Loura,
um filme de Manuel de Oliveira.
Todas as peripécias que compõem estes vários momentos
respeitam uma estrutura aparentemente simples, Na
verdade, o conto compõe-se de duas partes: na Parte I,
mais descritiva, são configuradas as personagens e os
contextos em que se elas movem; na Parte II, mais
dialógica, são contadas, sucintamente, duas situações
semelhantes por que passa Macário, mais precisamente, as
duas vezes em que ele se vê sem dinheiro e os meios
dissuasores a que terá de recorrer para ultrapassar
essas situações adversas. No entanto, confrontamo-nos
com uma rede narratológica bem mais intricada do que à
primeira vista parece. Assim, neste conto, há três
andamentos narrativos. A narrativa de primeiro nível (a
diegese) é contada por um narrador, cujo estatuto varia
entre hetero e autodiegético. Este nível diegético
centra-se em torno de alguém (narrador) que vai de
viagem e conta as suas impressões, em primeira pessoa,
acerca da paisagem que vai observando e que, ao chegar a
uma estalagem do Minho, trava conhecimento com Macário,
acabando este por lhe contar a sua história.
Devo contar que conheci este homem numa estalagem do
Minho (… ) talvez a história seja julgada trivial: a
mim, que nessa noite estava nervoso e sensível,
pareceu-me terrível – mas conto-a apenas como um
acidente singular da vida amorosa…
Vemos, pela leitura destes excertos, que o discurso não
segue a ordem cronológica dos eventos, apresentando
alterações relativamente a essa ordem, quando o narrador
recorre quer à analepse quer ao regresso a um tempo no
qual ou o protagonista (Macário) pressupostamente narra
a sua história ou uma testemunha (o narrador principal)
a enuncia.
Na narrativa de segundo nível (metadiegese), relata-se,
também em analepse, a história de amor entre Macário e
Luísa. Na verdade, o narrador conhece Macário quando
este já tem uma certa idade. Esse encontro dá-se, como
vimos, numa estalagem no Minho, quando, por
coincidência, ambos partilham o quarto n.º 3, facto que
irá facilitar a confidência e o relato da vida de
Macário, suscitados por uma conversa ao jantar sobre a
beleza feminina das terras do Norte:
«A minha curiosidade começou à ceia, quando eu
desfazia o peito de uma galinha afogado em arroz branco,
com fatias escarlates de paio – e a criada, uma gorda e
cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo,
fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem
estava defronte de mim, comendo tranquilamente a sua
geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu
guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos – se
ele era de Vila Real.
– Vivo lá. Há muitos anos – disse-me ele.
– Terra de mulheres bonitas, segundo me consta – disse
eu.
O homem calou-se.
(…) Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma
lembrança. Havia decerto no destino daquele velho uma
«mulher». Aí estava o seu melodrama ou a sua farsa,
porque inconscientemente estabeleci-me na ideia de que o
«facto», o «caso» daquele homem, devera ser grotesco. e
exalar escárnio (…)
– A mim têm-me afirmado que as mulheres de Vila Real
são as mais bonitas do Minho. Para olhos pretos
Guimarães, para corpos Santo Aleixo, para tranças os
Arcos: é lá que se vêem os cabelos claros cor de trigo.»
Uma cena do filme Singularidades de uma Rapariga
Loura.
A reacção de Macário a esta conversa fez perceber ao
narrador de 1.º grau que havia alguma história por
detrás do silêncio de Macário a estes comentários.
Macário veio depois contar a sua história ao companheiro
de hospedagem, já no quarto. Assim se induz no leitor a
ideia de que se trata de uma história verdadeira, pois
ele começa a acreditar que o narrador ouviu as
confidências de Macário e só desta forma consegue
transmitir a história. Com efeito, a ideia de que é
verdadeiro tudo o que se conta surge através de um
narrador heterodiegético que logo se apodera, agora em
terceira pessoa, do relato do narrador autodiegético e
só muito esporadicamente vai reaparecer o diálogo entre
o narrador e o protagonista Macário.
A narrativa de terceiro nível aparece encaixada no
segundo nível narrativo (meta-metadiegese), sendo uma
história fechada, em que são contados alguns “episódios
pitorescos” que envolveram a morte do conde de Arcos, na
tourada de Salvaterra, transferindo o narrador o seu
foco para a personagem Hilária, que passa a ser a
narradora do nível hipo-hipodiegético:
(…) e as manas Hilárias, a mais velha das quais,
tendo assistido, como aia de uma senhora da Casa da
Mina, à tourada de Salva – terra, em que morreu o conde
dos Arcos, nunca deixara de narrar os episódios
pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de
cara rapada e uma fita de cetim escarlate no rabicho (…)
Quando D. Hilária acabou de contar, suspirando, estas
desgraças passadas, começou-se a jogar.
Convém, entretanto, salientar que não faltam pormenores
e algumas peripécias que se destacam na linha evolutiva
do conto e que funcionam como indícios do que vai
acontecer. É o que sucede com a referência à xácara
mourisca que, ao percorrer todo o texto, instala um
clima melodramático, uma ideia de tragicidade da ligação
entre Macário e Luísa. Depois, temos o pormenor do
vistoso leque usado por Luísa, um objecto demasiado rico
para não se estranhar a sua posse em gente de parcos
recursos financeiros, facto que intriga Macário e deixa
subentendido o mistério que envolve a personagem
feminina, até porque o leque é habitualmente símbolo da
não transparência, funcionando, pois, também aqui como
elemento indicioso de desgraça futura:
(…) e ela, estendendo uma almofadinha no rebordo
do peitoril, vinha encostar-se mimosa e fresca
com o seu leque. Leque que preocupou Macário:
era uma ventarola chinesa, redonda, de seda
branca
com
dragões
escarlates
bordados à pena, uma cercadura de plumagem azul, fina e
trémula como uma penugem, e o seu cabo de marfim, donde
pendiam duas borlas de fio de ouro, tinha incrustações
de nácar à linda maneira persa.
Era um leque magnífico e naquele tempo inesperado nas
mãos de plebeias de uma rapariga vestida de cassa. Mas
como ela era loura e a mãe tão meridional, Macário, com
intuição interpretativa dos namorados, disse à sua
curiosidade: Será filha de um inglês. O inglês vai à
China, à Pérsia, a Ormuz, à Austrália, e vem cheio
daquelas jóias dos luxos exóticos, e nem Macário sabia
por que é que aquela ventarola de mandarina o preocupava
assim: mas segundo ele me disse – «aquilo deu-lhe no
goto».
Esse mistério irá ser desnudado, desmistificado, na
constatação feita pelo protagonista de que a mulher que
se apoderou do seu coração era uma ladra. As
características do leque são, elas próprias,
pressagiadoras de tragédia. Assim, a oposição presente
nos elementos seda branca/dragões escarlates simboliza a
aparência pura e angélica de Luísa (seda branca) e a sua
essência (dragões escarlates) – era uma cliptómana que
fica “toda escarlate”, quando, já na parte final, o
caixeiro da ourivesaria permite que Macário tome
conhecimento da sua cleptomania. Também a “cercadura de
plumagem azul, fina e trémula como uma penugem” que
ornamenta o leque sugere o mundo de superficialidade e
aparência de Luísa, detectado, curiosamente, por Macário
quando esta, ao ser rejeitada, vestia de azul.
Igualmente simbólica é a menção feita ao cabo do leque,
pois tal como o cabo sustenta o resto do leque, também
Macário seria o futuro suporte de Luísa, não tivesse
ele, atempadamente, repudiá-la.
Finalmente, os desaparecimentos, primeiro, dos lenços da
Índia, na loja do Tio Francisco, e, depois, de uma peça
de ouro, numa noite de convívio e jogo, em casa de
Luísa, desvalorizados por Macário, funcionam sobretudo
como uma chamada de atenção para o leitor que, mais
tarde acabará, por perceber o porquê do desaparecimento
de uns e da outra. Na verdade, quando já noivos, Macário
leva Luísa a escolher um anel e, enquanto escolhem um,
Luísa rouba outro, estamos perante uma
peripécia-surpresa que precede o final do conto, com a
conclusão que Macário taxativamente enuncia: "És uma
ladra!". O leitor, esse, tinha já descoberto,
certamente, essa característica de Luísa. É que, mais
distanciado dos acontecimentos, o seu espírito crítico
fora há muito tempo accionado, retirando da ocorrência
uma lição, à boa maneira realista: nunca ninguém deve
deixar-se levar pelas aparências, como ocorrera com
Macário.
Uma cena do filme Singularidades de uma
Rapariga Loura.
Não podemos terminar a análise deste conto, sem proceder
a uma breve contextualização histórico-literária do
mesmo. Singularidades de Uma Rapariga Loura ainda é uma
obra de transição entre o Romantismo e o Realismo, sendo
que o pendor realista começa a ganhar vigor. É o que
denunciam, por exemplo, algumas descrições
pormenorizadas, como as que se reportam a Macário, ao
calçado que se encontra à entrada dos quartos da
estalagem ou ainda ao leque de Luísa que merece uma
atenção especial do narrador, com referências à forma, à
matéria, à cor e à decoração. Convém, no entanto,
referir que Macário, sentimentalmente, é um romântico,
um idealista, uma espécie de excepção numa sociedade
corrupta, sendo comandado pelo destino, mas assumindo
pontualmente uma atitude realista no final da obra,
quando, desiludido, rompe com Luísa, reconhecendo nela,
então, os vícios de uma sociedade romântica,
interesseira, com falta de carácter. Romântico, também,
é o campo semântico que enforma a descrição
paisagística: paisagem soturna, velho muro de um
cemitério, emolientes brancuras de um luar, nevoeiro,
claridade suave e outonal da tarde, arvoredos, murmurosa
concavidade de um vale, canto dos rouxinóis… Também
Luísa tem nítidas marcas românticas, não só física, mas
sobretudo psicologicamente, porque é muito dada a
“imaginações apaixonadas”. De qualquer dos modos, as
personagens, na sua globalidade, evidenciam traços
realistas, ao serem apresentadas com virtudes e
defeitos, não sendo idealizadas como no romantismo.
Veja-se, a título de exemplo, a traição do amigo de
Macário e o afastamento de Luísa do convencional tipo
mulher-anjo.
Elemento notoriamente realista é o distanciamento do
narrador face àquilo que narra. Efectivamente, ele só
relata o que é contado por Macário ou por D. Hilária.
Quando tal não se verifica, emprega os advérbios
“talvez” ou “decerto”. Realista não deixa de ser também
um vislumbre anticlerical, aquando da desconfiança de
Macário em relação ao beneficiado que teria escondido
debaixo do pé a peça de ouro que caíra ao chão.
Em jeito de conclusão, dir-se-á que Singularidades de
Uma Rapariga Loura, uma obra-prima de Eça de
Queirós, constitui uma narrativa aberta. Afinal quem era
Luísa e a mãe? E o amigo de Macário? Qual foi o seu
destino? O que aconteceu depois a Macário e a Luísa?
Estas e outras interrogações suscitam enorme expectativa
no leitor, uma particularidade só inerente às grandes
obras.
Bibliografia consultada:
- CAL, Ernesto Guerra da, Linguagem e estilo de Eça de
Queirós, Lisboa, Editorial Aster
- REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M., Dicionário de
Narratologia, 4.ª ed., revista e aumentada, Coimbra,
Livraria Almedina, 1994, p.80
- Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Lisboa, Verbo
Editora, n.º 5