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OS MAIAS - Personagens

 

- JOÃO DA EGA -

 

Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente - ora reprovado, ora perdendo o ano. Sua mãe, rica, viúva e beata, retirada numa quinta ao pé de Celorico de Basto com uma filha, beata, viúva e rica também, tinha apenas uma noção vaga do que o Joãozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra.

O capelão afirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá e como o titi: e esta promessa bastava à boa senhora, que se ocupava sobretudo da sua doença  de  entranhas

e dos confortos desse padre Serafim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta, que ele escandalizava com a sua irreligião e as suas facécias heréticas.

João da Ega, com efeito, era considerado não só em Celorico, mas também na Academia que ele espantava pela audácia e pelos ditos, como o maior ateu, o maior demagogo, que jamais aparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por sistema exagerou o seu ódio à Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes médias, o amor livre das ficções do matrimónio, a repartição das terras, o culto de Satanás. O esforço da inteligência neste sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito - tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satânico. Desde a sua entrada na Universidade renovara as tradições da antiga boémia: trazia os rasgões da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; á noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze anos, filhas de empregados, com quem às vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos de doce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o apetecido nas famílias. (Cap. IV, pp. 92-93 )

 

 

Talvez seja a figura mais caracterizada e melhor conseguida na obra. Este “Mefistófeles de Celorico” era um fantasista, um progressista, um crítico iluminado, um literato esteticamente instável, com uma mentalidade em constante conflito sarcástico com os que o rodeavam. A exuberância das suas atitudes gesticulantes e as suas opiniões mordazes e escandalosas (defendia a invasão espanhola, a bancarrota, a revolução, a corrida a pontapé dos políticos...) revestem-se de uma certa comicidade.

 

Tal como Carlos, acaba por se tornar num falhado ("As Memórias de um Átomo" ficaram pelos projectos sistematicamente adiados) e num corrompido pela sociedade em que se embrenhara.

 

João da Ega é considerado o retrato, o alter-ego de Eça ( "vidro entalado no olho", "nariz adunco", "pescoço esganiçado", "punhos de tísico", "pernas de cegonha", "grande fazedor de frases"...

 

Não deixa, pois de ser uma personagem importante na galeria de personagens queirosianas, até porque, em síntese:

 

É a projecção literária de Eça de Queirós.
É uma personagem contraditória: por um lado, romântico e sentimental, por outro, progressista e crítico sarcástico do Portugal do Constitucionalismo.
Diletante, concebe grandes projectos literários que nunca chega a realizar.
Nos últimos capítulos ocupa um papel de grande relevo no desenrolar da intriga.
É a ele que Guimarães entrega o cofre com os dados biográficos de Maria Eduarda.
É ele que procura Vilaça para lhe revelar a identidade de Maria Eduarda.
Ele e Carlos revelam a novidade a Afonso.
É ele que revela a verdade a Maria Eduarda;
É ainda ele que a acompanha ao comboio e se despede, quando ela parte definitivamente para Paris.

 

Obs: as páginas indicadas referem-se à obra de Eça de Queirós, Os Maias (Episódios da Vida Romântica), Edição Livros do Brasil, de acordo com a primeira edição (1888). Lisboa

 

Joaquim Matias da Silva

 

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