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Sttau Monteiro
 

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

 

A SITUAÇÃO POLÍTICA

 

Após as invasões francesas, que ocorreram entre 1807 e 1811 - a primeira teve lugar a 19 de Novembro de 1807, quando Junot, à frente de um exército de 25.000 homens invadiu o país, sendo derrotado pelas forças anglo-lusas em Roliça e em Vimeiro; a segunda, em Fevereiro de 1809, chefiada por Soult que, à frente de um exército de 80. 000 homens, invade o nosso território por Trás-os-Montes, não tendo passado, porém, do Porto, onde o pânico levou ao desastre da Ponte das Barcas; finalmente, a terceira, em Julho de 1810, em que Masséna, com o seu exército, é flagelado em Almeida e castigado no Buçaco, tendo parado frente às Linhas de Torre e retirado em 1811 -, a situação política em Portugal, tornou-se extremamente confusa e periclitante. Primeiro, foi o domínio despótico e sobranceiro dos ingleses; a seguir, a dependência de Lisboa em relação ao Rio de Janeiro, para onde a corte se deslocara em finais de Novembro de 1807. 

 

 

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Portugal passava, assim, praticamente de metrópole a colónia. Com efeito, em 1815, o Brasil era elevado a reino e, passados três anos, D. João VI era aclamado, no Rio de Janeiro, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, não demonstrando vontade nenhuma de regressar a Portugal, quando no país a situação se tornava asfixiante: D. Maria I tinha falecido em 1816 e em Lisboa estava uma regência incapaz de governar segundo os novos ideais e de se impor ao predomínio político-militar da Inglaterra.

 

Esse predomínio político-militar inglês era imposto por William Carr Beresford, general inglês e marechal instrutor do exército português, que governava Portugal, submetendo o país a uma forte organização militar e colocando os oficiais britânicos nos mais altos postos, enquanto os oficiais portugueses eram relegados para postos secundários.

 

Grande parte das receitas públicas era absorvida pelo exército e a crise económica e financeira agravava-se. Beresford deslocou-se por duas vezes ao Brasil para, junto do monarca ausente, conseguir mais autoridade. Em parte, os seus desejos foram satisfeitos e começaram a perseguir-se todos os liberais. O descontentamento geral alargava-se, então, e em 1817 chegaram até a correr rumores de uma conspiração contra a presença inglesa e favorável ao regresso do rei. Tirando proveitos desses rumores, Beresford procurou reforçar uma vez mais o seu poder e reprimiu severamente todos os suspeitos e implicados, entre eles o general Gomes Freire de Andrade, partidário das ideias novas e grão-mestre da maçonaria portuguesa desde 1816.

 Esta situação vai estar na base, aliás, da obra de Luís de Sttau Monteiro, Felizmente Há Luar! O fermento da revolução estava lançado e iria dar fruto no dia 24 de Agosto de 1820, quando, aproveitando a ausência de Beresford no Brasil, se dá a Revolução Liberal.

Pedinte - gravura de Henry L'Évêque (1814). Temos aqui retratado um exemplo de mendicidade autorizada. Veja-se a certidão que o homem segura na mão esquerda.

 

O marechal inglês só voltou a pisar solo português em 1827, chamado pela então regente D. Isabel Maria, mas não foi sequer autorizado a assumir o comando do exército português.

 

A SITUAÇÃO SOCIAL

 

Após as invasões francesas, a situação económica em Portugal era de uma gravidade extrema. Com efeito, os anos em que o país estivera envolvido em guerra provocaram um enorme desgaste nos vários sectores da economia - agricultura, comércio e indústria. Portugal ficou mais pobre. É que ao motivo já invocado juntaram-se a perda de vidas humanas, o desemprego, a fome e a destruição e roubos feitos ao seu património, quer pelas tropas francesas, quer inglesas. Uns e outros saquearam igrejas, mosteiros e palácios; levaram consigo alfaias religiosas, jóias, livros raros e obras de arte valiosas, entre elas pinturas, esculturas e móveis.

Entretanto, o Brasil, que durante o século XVIII fora para Portugal uma grande fonte de ouro, continuava a pesar poderosamente na economia da Nação no século XIX,  apresentando-se como a nossa mais rendosa colónia e o principal mercado para os nossos produtos, pois Portugal, como metrópole, tinha o exclusivo do seu abastecimento.

 

A sopa de Arroios - desenho de Domingos Sequeira (1810). Fugindo ao invasor francês, as populações invadem a capital. Retrata-se aqui a distribuição da sopa, por iniciativa do Governo, à multidão esfomeada.

 

 

Mas logo que o príncipe-regente D. João chegou ao Brasil, movido pelas necessidades da colónia e pela pressão da Inglaterra, decretou a abertura dos portos brasileiros ao comércio das nações (1808). E, deste modo, terminava o exclusivo da navegação para a marinha nacional e o comércio português ficava colocado em pé de igualdade com o de outras nações.

 

 

A mendiga - Lisboa (1814). A velhice, a invalidez, o desemprego... colocavam as pessoas à mercê da caridade alheia. A mendicidade era uma constante da época.

Às crises económica e social juntavam-se a crise ideológica e a insegurança provocada pela ausência da corte no Brasil. A presença prepotente dos oficiais britânicos, com Beresford a desenvolver uma acção severamente repressiva, perseguindo constantemente as novas ideias liberais e vendo conspirações por todo o lado (ordenou, inclusive, a morte do general benquisto pelo povo, Gomes Freire de Andrade, em 1817, acusado de provocar uma conjura que tinha como objectivo a implantação do liberalismo em Portugal - essa tentativa de rebelião redundou num banho de sangue, sendo todos os implicados mortos na forca), provocou mal-estar mesmo no seio do exército, porque os altos postos de comando eram entregues aos ingleses, enquanto aos militares portugueses eram atribuídos os postos secundários, e aumentou o clima de descontentamento social que veio a generalizar-se por Portugal inteiro. O fermento revolucionário levedava e, logo no ano seguinte, 1818, um grupo de burgueses do Porto deu origem a uma associação secreta, o Sinédrio, que haveria de impulsionar a Revolução de 1820.

 

 

A CONSPIRAÇÃO DE 1817

 

Entrado o ano de 1817, a atmosfera era mais que nunca propícia a empreendimentos revolucionários, mas, por seu lado, a polícia redobrava de esforços no sentido de os descobrir e desarmar.

 

Em 8 de Março apresenta-se na Intendência da Polícia e na legação de Espanha o general espanhol Francisco Xavier Cabanes cuja ocupação não constava do seu passaporte, e que vinha acompanhado de um certo José Wals, igualmente misterioso. Em breve apurou a polícia que o general espanhol estabelecera relações com o tenente-general Gomes Freire de Andrade, regressado de França em 1815, e, desde 1816, grão-mestre da maçonaria portuguesa. Tratar-se-ia de entendimentos para uma acção revolucionária?

 

Entretanto, chega notícia de ter eclodido em Pernambuco, a 6 de Março, uma revolução republicana; e pouco depois descobre-se em Lisboa a existência de uma conspiração, na qual estavam implicados muitos militares.

 

A descoberta da conspiração foi devida a uma denúncia, e esta à imprudência de um dos conjurados: o alferes de infantaria 3, António Cabral Calheiros Furtado de Lemos.

Convencido de que a revolução era cousa próxima e de êxito seguro, Cabral Calheiros, aliciado para ela em princípios de Abril, logo no dia 15 desse mês, abancando com uns amigos no café Marrare, de Lisboa, quis mostrar-se bem informado. Fanfarrão, linguareiro, tonitroava ameaças. O rei, os governadores, Beresford, tudo seria corrido dentro em breve... E mostrava uma proclamação incendiária. Um dos ouvintes, o capitão José Pinto de Morais Sarmento, maçon filiado na loja Filantropia de Santarém, a que também pertencia o alferes Calheiros, saiu do café e encontrou-se com outro militar, igualmente maçon, o capitão José de Andrade Corvo de Camões. Troca de impressões sobre política, assunto palpitante, e logo o primeiro conta ao segundo o que acabava de ouvir.

 

Este capitão Corvo era militar de bem escasso valor. Da sua folha de serviço, relativa a 1812, que Raul Brandão extractou (A conspiração de Gomes Freire), diz-se que «é pouco zeloso do serviço», «pouco entende dele», e «não move mesmo bem um pelotão».

Era, pois, o capitão Corvo pessoa adstrita à intimidade de Beresford. Sabedor do que contra ele se tramava, fez-lho logo saber, directa ou indirectamente. Então o marechal ordenou ao zeloso denunciante que lhe arranjasse uma cópia da proclamação que Calheiros mostrara.

Corvo procura então Morais Sarmento, a quem transmite o desejo de Beresford. Este recorre a um intermediário, o bacharel João de Sá Pereira Ferreira Soares, que, também amigo de Calheiros, consegue arranjar um resumo da proclamação, suficientemente elucidativo.

 

Beresford estava agora conhecedor da situação. Grave perigo ameaçava as instituições e, ao mesmo tempo, a sua própria vida. Homem habituado a decisões graves, tomou logo uma resolução, que, sendo torpe, não deixa de ser contudo defensável desde que se considere ditada por uma razão de Estado e pela instintiva defesa da própria existência. Consistia ela em armar uma cilada aos conspiradores, introduzindo no seu seio, como espiões, aqueles tão dedicados informadores.

 

(...) Dentro em pouco sabem os nomes dos principais conjurados; e logo os sabe também Beresford.

(...) A conjuração é movida por uma associação secreta, cujo organismo central se chama Supremo Conselho Regenerador de Portugal, sendo em nome deste que se expedem as ordens e as proclamações.

Também se fica sabendo que o plano de acção, na fase preparatória, consistia no estabelecimento de uma rede de delegações daquele organismo, espalhadas pelas principais cidades e vilas, de modo a tornar possível a deflagração simultânea do acto revolucionário na capital e por todo o País.

 

PRISÕES

 

Agora já pode Beresford precipitar os acontecimentos. Conhece os planos de acção revolucionária e os nomes dos principais implicados na conspiração. No dia 23, entrega toda a documentação que possui ao Marquês de Borba, Governador presidente do conselho da regência, por intermédio de D. Miguel Pereira Forjaz, secretário da Regência e titular dos negócios da Guerra.

No dia imediato reúne-se o Conselho. Um dos Governadores, o Principal Sousa, toma a palavra e declara merecer-lhe as mais graves suspeitas a conduta do tenente-general Gomes Freire de Andrade, em vista das relações que mantém com o misterioso espanhol Cabanes, que anda vigiado pela polícia. Propõe a sua detenção, a título preventivo. Então o Marquês de Borba exibe os papéis que recebera de Beresford e expõe o que se sabe a respeito da conspiração; entre os nomes dos conjurados figura o de Gomes Freire.

 

Assenta-se na necessidade de realizar imediatamente a prisão dos indiciados e lavra-se a respectiva portaria. (...)

Gomes Freire é o primeiro a ser preso. À noite a polícia cerca-lhe a casa e entra nela arrombando as portas. O tenente-coronel José Maria de Sousa Tavares dá-lhe voz de prisão, mas Gomes Freire recusa-se reconhecer-lhe autoridade, alegando com violência a desigualdade de patentes, ao mesmo tempo que lança mão duma pistola. Desarma-o a sua dedicada companheira Matilde de Melo, e logo o desembargador João Gaudêncio mostra a ordem de prisão.

Gomes Freire entrega-se. Levam-no numa sege, entre escolta, a caminho da Torre de S. Julião da Barra. (...)

O processo foi seguindo seus termos. Houve algumas irregularidades: aceitam-se denúncias secretas e não foram acareados os presos com as testemunhas que os contradiziam.

Três meses após as prisões, foi levantada a incomunicabilidade aos detidos; mas Gomes Freire, continuou objecto de um tratamento mais cruel, de uma vigilância mais viva.

(...)

 

 

CARTA DE MATILDE DE MELO A ANTÓNIO DE SOUSA FALCÃO

 

17(?) Outubro 1817 (Não tem data)

Ao lll.mo e Ex.mo Sr. António de Sousa Falcão
 

Não peço a V. Exa. mais nada porque sei a sua amizade e o seu cuidado, mas obtenha-me pelo amor de Deus que eu o veja uma vez, uma só vez, eu sei o bem que isto lhe fará, mande-lhe dizer que a sua M. (Matilde) já que não pode ser mais dela (sic) o que deseja unicamente é entrar em um recolhimento para poder livremente os poucos anos que lhe restam a viver e chorar pela sua perda.

 

                                                       De V. Exa. muito e muito obrigada.

 

 

SENTENÇA

 

Em 15 de Outubro lavraram os Juízes a sentença. Doze dos acusados foram condenados à morte por enforcamento: José Joaquim Pinto da Silva, José Campeio de Miranda, José Ribeiro Pinto, Manuel Monteiro de Carvalho, Gomes Freire de Andrade, José Francisco das Neves, António Cabral Caleiros Furtado de Lemos, Pedro Ricardo de Figueiredo, Manuel de Jesus Monteiro, Manuel Inácio de Figueiredo e Maximiano Dias Ribeiro. Aos cadáveres dos oito primeiros mencionados seriam decepadas as cabeças, e incineradas com os respectivos corpos, sendo as cinzas lançadas ao mar.(...)

 

Por tais motivos os justiçados de 1817 vieram a ser venerados pelo liberalismo, quando triunfante, não só como precursores, mas como mártires - mártires da pátria, porque a conspiração incluía no seu programa a expulsão de Beresford e a emancipação do predomínio inglês. Nessa veneração teve sempre um lugar especial o nome de Gomes Freire, não tanto porque entre eles fora a figura de mais alto relevo social, mas sobretudo porque em relação à sua pessoa a crueldade da sentença se manifestara mais viva. Apontou-se a sua morte como um acto de acintosa perseguição, como expressão do veemente desejo de patentear um grande exemplo, para repressão da difusão das ideias liberais e da Maçonaria.

 

Gomes Freire não morreu inocente. Contudo, é manifesta a desproporção entre o delito e o castigo, visto ter sido sentenciado a uma morte infamante, agravada com a incineração do cadáver, tal como se ele tivesse pertencido ao número dos conspiradores mais activos. Ora, tudo quanto se provou foi que tinha recebido em sua casa alguns dos conjurados e os escutara, prometendo agir no momento oportuno. Não tomara parte em nenhuma reunião, não estabelecera planos, não colaborara activamente na preparação da revolta. E até ao confessar o seu propósito de acção, Gomes Freire alegou ante os juízes que se propunha apenas impedir tumultos, evitar a anarquia. Simples cúmplice, Gomes Freire foi equiparado no castigo aos mais activos agentes da conspiração. Isto torna legítima a suspeita de que a sentença puniu realmente mais as suas ideias do que os seus actos. (...)
 


O DIA DO ENFORCAMENTO DE GOMES FREIRE

 

O dia dezoito é um dia de sol, que promete uma noite esplêndida. Faz (Gomes Freire) enfim a barba, calça-se, veste a melhor sobrecasaca, prepara-se para comandar o fogo. Mas apresentam-lhe a alva e anunciam-lhe o garrote: cai num rápido delíquio, de que sai para ouvir ler a sentença com tranquilidade, dizendo algumas palavras amargas sobre seu primo D. Miguel Pereira Forjaz. Pede para escrever (é sua última vontade) a parentes e amigos. Recusam. (...)

 

RAUL BRANDÃO em A Conspiração de Gomes Freire

 

 

EXECUÇÃO

 

Pelas duas horas da tarde do dia 18, após demorada e torturante leitura dos extensíssimos considerandos da sentença, os onze condenados à morte que estavam encarcerados na cadeia do Limoeiro saíram dali para o lugar do suplício, o Campo de Santa Ana, hoje Campo dos Mártires da Pátria.

 

Já estava erguida a forca, e postados junto dela os quatro caixões para os cadáveres dos condenados que a sentença poupara à fogueira. As tropas, em volta, continham a onda de populares que se aglomerara para assistir à horrorosa cena.

 

Com atroz lentidão se foi executando a sentença.

 

Não havia pressas. «Felizmente há luar...» - observara  D. Miguel  Pereira Forjaz ao Intendente da Polícia, em carta do próprio dia 18.

 

E, com efeito, foi o luar de uma linda noite de Outono, que, indiferente às paixões, às lutas, à maldade dos homens, iluminou o final daquele lúgubre espectáculo. De madrugada, ainda crepitavam as chamas das fogueiras, acabando a sua obra de reduzir a cinzas os míseros a que a sentença negara o direito à sepultura.

 

Gomes Freire precedera na morte os seus onze infortunados companheiros. Até à última hora esperara a morte por fuzilamento.

Nesse pressuposto, alta manhã fardara-se, visionando o momento supremo, em que imitando Ney, daria ele mesmo a voz de fogo ao pelotão executor. Compreende-se bem o seu desmaio, provocado pelo tremendo abalo moral que sofreu ao anunciarem-lhe que seria enforcado - género de morte tão humilhante para quem tantas vezes expusera o peito às balas nos campos de batalha. (...)


DAMIÃO PERES em História de Portugal

 

Finalmente seguiu o préstito para o lugar do patíbulo, onde se achavam postadas cinco companhias do regimento n° 19. (...) Dado finalmente o sinal da execução, Gomes Freire subiu com efeito os degraus do patíbulo, pronunciando algumas palavras, que a vozearia dos padres, que lhe assistiam na sua hora extrema, não deixava perceber. Depois da morte na forca, separando-se-lhe a cabeça do corpo, foram ambas estas cousas queimadas, e as cinzas lançadas ao mar, na conformidade da respectiva sentença.

LUZ SORIANO em História da Guerra Civil

 

 

ORDEM DO DIA 19

 

Nada de novo - diz Beresford na ordem do dia 19 - e assina marquês de Campo Maior. Nada de novo... O corpo de Gomes Freire «mal queimado foi atirado ao mar, que depois o lançou de si primeira e segunda vez, foi roído pelos cães até que for fim enterraram na praia um resto».

RAUL BRANDÃO em Vida e Morte de Gomes Freire
 

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Joaquim Matias da Silva

 

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