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ANÁLISE DO SONETO

 

- Alma minha gentil, que te partiste -

 

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.


Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta sida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

 

Notas: V. 1 - Alma minha: minha amada; V. 1 - gentil: delicada, pura; V. 5 - assento etéreo: Céu; V. 6 - memória: lembrança; V. 6 - consente: permite; V. 7 - ardente: profundo, sentido.

 

 

 

 

 

ASSUNTO:

 

Diogo do Couto, historiador do séc. XVI, escreveu na Década VIII: «...e ali se lhe afogou ῦa moça china que trazia muito formosa, com que vinha embarcado e muito obrigado, e em terra fez sonetos à sua morte, em que entrou aquele que diz: - Alma minha gentil que te partiste. A esta chama ele, em suas obras, Dinamene».

 

Observe-se que esta passagem  já foi posta em dúvida. O que é certo é que inspirado ou não pela saudade dessa jovem naufragada na foz do rio Mecong, Camões compôs uma das suas mais belas e conhecidas composições líricas, não só pelo ritmo melódico, mas também pela sua profunda religiosidade. Em tom de prece, e mergulhado na desconsolada tristeza da separação, o eu lírico roga à amada perdida que interceda junto a Deus de modo a levá-lo também a ele a vê-la lá no Céu o mais depressa possível.

 

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Outras linhas de leitura:

 

1. ATENTE:


a) Na teoria neoplatónica do amor aqui expressa - amor puro e não carnal. Camões, numa peça de teatro de nome Filodemo, chama-lhe «amor pela passiva», isto é, «amour de tête», produto apenas da imaginação, como diriam os franceses: «...Eu não pretendo dela, mais que o não pretendei' dela nada, porque, o que lhe quero, consigo mesmo se paga; que este amor é como a ave fénix que de si só nasce e não de outro nenhum interesse».

 

b) Na possível divisão em duas partes lógicas: a conformação perante o facto consumado (repousa / viva), na primeira quadra; a formulação de duas súplicas específicas nas estrofes restantes, apresentando as condições para que elas possam ser, se não atendidas, pelos menos ouvidas.


c) Que a segunda parte ainda poderá subdividir-se em dois momentos, introduzidos pela condicional: num primeiro, correspondente à segunda quadra, o eu lírico espera não ter sido esquecido; num segundo, isto é, nos dois tercetos, põe a hipótese de que, se realmente não foi esquecido e a sua dor pode merecer-lhe alguma coisa, então que Deus lhe encurte a vida para novamente voltar a vê-la.

 

d) Na condicíonalidade da segunda parte, em contraste com a situação de afastamento existente na primeira, onde o sujeito lírico expressa a angústia terrível de que o amor, aquele amor puro que já viu, noutros tempos, luzir nos olhos da amada não possa resistir à morte e à eternidade.


e) Que nas duas quadras os três primeiros versos referem-se à alma e o último ao eu lírico; nos tercetos, por sua vez, os dois últimos versos de cada um referem-se ao eu lírico, enaqunto o primeiro remete para a alma da amada. Daqui se conclui que o soneto é todo ele um jogo simétrico entre a alma do ser amado e o eu da enunciação que se lhe dirige;


f) Que, curiosamente, as formas verbais aumentam a sua presença de estrofe para estrofe: há três na primeira, quatro na segunda e cinco em cada uma das últimas, sendo que o verbo ver está repetido três vezes (
viste / vires / ver-te) e o verbo levar duas (leve / levou), donde se conclui o estilo predominantemente reflexivo, isto é, à medida que o poema se vai encaminhando para o desfecho anota-se que a sua lógica interna e o seu monólogo lírico se densificam em seus elementos ideológicos.


g) Em alguns dos principais recursos estílístico: a apóstrofe que abre o soneto e que se prolonga até ao fim da composição, assumindo uma espécie de prosopopeia; o valor enfático dos deíticos situacionais
/ (1.ª quadra) e (2.ª quadra); as perífrases e os eufemismos a elas aliados (que te partiste desta vida / repousa lá no Céu / assento etéreo onde subiste / que teus anos encurtou); a expressividade antitética dos dois últimos versos da primeira quadra (lá ... / Céu ... terra / repousa ... viva); o papel articulador das repetições e das rimas finais, sendo estas todas em /-te/, menos em três versos que são em /-ou/, a sugerirem, respetivamente, a marca indelével que a morte da amada deixou para sempre na vida do sujeito poético (que se vê perdido e que se lhe dirige em tom suplicante) e a dúvida que o assola e massacra - será que o amor que já exisitu entre eles ainda poderá servir para alguma coisa?; e, finalmente, na comparação com que se termina o soneto, a transmitir a ideia da pressa do eu lírico em ir ter com o seu Amor, para o assento etéreo para onde a amada subiu tão cedo.


h) Na função apelativa da linguagem transmitida pelas formas do imperativo no seu início (v. 3) e no seu (des)fecho (v. 12).

 

3. ESQUEMA RIMÁTICO: ABBA / ABBA / CDC / DCD, com rimas interpolada e emparelhada, nas quadras; cruzada, nos tercetos; consoante ao longo de toda a composição e alternando entre masculina ou aguda e feminina ou grave, com primazia para esta última (repare-se que é o tu que interpela, que intercede, mas a figura mais dominante ao longo do texto é a da sua amada, ainda que ela esteja ausente lá no assento etéreo).

BRAGANÇA, António (1981). Textos e comentários, c/ adaptações.

Publicado por

Joaquim Matias da Silva

 

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